“Ainda fazem da flor seu mais forte refrão e acreditam nas flores vencendo o canhão” Geraldo Vandré
Episódios relativos ao envolvimento de militares em articulações para um golpe de estado, além
de escancarar a humilhante capitulação de respeitáveis homens estrelados a um inculto
capitão manipulador com arroubos totalitários, trouxeram à tona questionamentos
acerca do papel na sociedade dessa milenar instituição que deveria estar a
serviço do Estado e da coletividade, não do presidente de plantão.
À parte as complexas relações dos militares com o poder, a serem abordadas
por analistas políticos e sociólogos de botequim, trago minha humilde visão,
digamos, poética. Iniciando com uma indagação crucial: precisamos mesmo de forças
armadas? Antes que queiram me internar num hospício ou me inscrever na “sociedade
de poetas mortos” (e desaparecidos), levanto algumas ponderações em defesa de minha
atrevida proposição.
Começo pelos gastos pornográficos. Os recursos destinados pelas nações na
compra de armas e na manutenção dos contingentes das três forças certamente seriam
suficientes para debelar a fome e a miséria do mundo, permitindo a todos uma
vida mais digna e feliz. Não fosse por outra razão, essa já bastaria para que passemos
a refletir mais seriamente sobre a pertinência da questão. Países como o Japão,
a Islândia e a Costa Rica são desprovidos de forças armadas e nem por isso
foram escravizados por outras nações.
A tese da extinção do aparato militar é desqualificada pelo ‘irrefutável’
argumento de que serve para garantir “a incolumidade das fronteiras”, “a inviolabilidade
do território” e todo aquele papo ufanista que estamos cansados de escutar para
justificar que se torre o dinheiro arrancado da nossa labuta para manutenção dessa
estrutura mastodôntica e arcaica que, convenhamos, em nada contribui para o
aperfeiçoamento de nossa vida social.
Acredito que os seres humanos com sua tenaz criatividade, estejam aptos a
conceber mecanismos jurídicos e institucionais para assegurar uma vida comunitária
próspera a todos seus iguais sem precisar recorrer a esse estorvo que permanentemente
mantém sobre nossas cabeças uma ameaçadora espada de Dâmocles. Não é um
contrassenso que, para conservar a paz, necessitemos da proteção de forças de
guerra?
Por externar tais ideias, já devem estar me querendo enquadrar na Lei de
Segurança Nacional por apologia comunista, não se explicando por que países com
regimes de esquerda exaltam, até com maior ênfase, suas gloriosas tropas
terrestres, aeronáuticas e marinhas e exibem, orgulhosos, seu arsenal bélico.
De fato, parece que, acima de questões doutrinárias, governos de todos os
matizes ideológicos se unem em saudar suas bravas “forças armadas”.
A expressão “forças armadas” nunca deixa de vir acompanhada de predicados
como “triunfantes”, “honradas”, “patriotas” e outras adjetivações retumbantes
que escamoteiam um sentimento latente de pavor, resquício dos tempos em que os
“honoráveis” homens de farda comandavam sem pruridos morais tenebrosas sessões
de tortura nas masmorras da ditadura.
Personalidades das mais diversas funções como políticos, magistrados,
jornalistas, empresários, policiais são alvo constante de difamações. Até mesmo
professores, médicos e sacerdotes não escapam do julgamento implacável da
opinião pública. Mas poucos ousam, em público, ferir o brio dos sacrossantos senhores
das armas. Ao falar de militares, todos se borram nas calças.
A par do fato de que militares (não todos) prezam valores nobres como a
honra e a honestidade, a verdade é que constituem uma classe que onera muito
mais a sociedade do que dá em troca. Num mundo onde prevalecesse a fraternidade
e o humanismo, pouco ou nada teriam a colaborar com suas estapafúrdias ideias
de complôs e teorias da conspiração para justificar sua imprescindibilidade e
garantir a reverenciosa deferência dos cidadãos de bem.
Sabemos que, em boa parte das nações, sobretudo as mais atrasadas que não
possuem instituições sólidas, os militares, não satisfeitos com sua posição proeminente
perante a comunidade, intrometem-se em assuntos que não lhes dizem respeito.
Isso quando não impõem regimes de terror. Embora só lhes coubesse agir em caso
de ameaça externa, usam seus efetivos para coibir e intimidar a população civil.
Valem-se da exclusiva prerrogativa de força e de suas baionetas para reprimir
compatriotas desarmados que deveriam proteger. Não atuam para resguardar o país
de ataques estrangeiros mas para blindar governantes autocratas que almejam
perpetuar-se no poder. Em troca de sua subserviência, acumulam regalias e recebem
benesses.
Por aqui, chegaram ao cúmulo de ocupar, durante a pandemia, a pasta da
Saúde sem ter as mínimas qualificações para tal, a não ser submeter-se
servilmente ao comandante-em-chefe que, indiferente à tragédia sanitária,
esbaldava-se em passeios de moto e jet ski. As centenas de milhares de mortes
foram friamente computadas pelas autoridades espartanas como meras baixas da
batalha para resguardar a economia e proteger os negócios.
Já que não há nada que possamos fazer, resta-nos sonhar: que tal
substituir as temidas FORÇAS ARMADAS, que se impõem pela autoridade, respeito e
disciplina, por FORÇAS AMADAS, um exército de pessoas do bem que promovem ações
de solidariedade, auxílio e amparo. Que se sobressaiam, não pelo poder de suas
“armas”, mas pelo valor de suas “almas”? Ao invés de fardas verde-oliva
recheadas de medalhas a celebrar o número de mortes impingidas ao inimigo, usariam
despojadas vestes multicoloridas que externam a atuação em prol da vida.
Num mundo ideal, onde fossem abolidos as fronteiras, a opressão e os
privilégios, os militares não fariam falta. Todos seríamos civis. Ou melhor,
cidadãos. Ou melhor, humanos. Ou melhor, irmãos uns dos outros.