Quando criança, eu costumava jogar futebol a cinquenta metros de casa, em um terreno abandonado, no bairro do Paraíso. Ficava numa rua simpática e até então pouco movimentada que começava onde os bondes faziam um balão no início da Avenida Paulista e terminava próximo a um campo de futebol de várzea por onde viria posteriormente a passar a Avenida Vinte e Três de Maio. Chamava-se ela Rua do Bispo. Não sei de onde surgiu esse pitoresco nome e nem me importava saber, voltado que estava para questões mais importantes, como brincar e ser feliz. Moleques peraltas, não nos incomodávamos de jogar bola em campos improvisados, até mesmo sobre paralelepípedos desencontrados, nos tempos em que o leito irregular de uma rua com pouco movimento era o bastante para que fosse transformada em arena futebolística. Os minguados automóveis existentes passavam numa frequência inimaginável para os padrões de milhões de hoje, ao que conferíamos ao solitário usuário da via, reverenciosa deferência, interrompendo respeitosamente o jogo até o felizardo proprietário do veículo importado acabar de desfilar sua altivez motorizada.
Todo o fim de semana reuníamo-nos ‘religiosamente’ na Rua do Bispo, para jogar uma inocente e nada pecaminosa pelada. Simpática rua. Lembra-me travessuras, traquinices e bem aventuradas diabruras. Rua do Bispo era um nome singelo, informal, fácil de se lembrar, até para uma criança poder marcar o encontro da turma.
Vivíamos no paraíso, até que um bando de vereadores ímpios resolveu revogar, na calada da noite, o nome da Rua do Bispo. Fosse ‘Rua Bispo Fulano de Tal’ ninguém certamente mexeria no santo nome, sob o risco de excomunhão. Não era o caso daquele nome simplório, descompromissado, adquirido possivelmente em função de, em tempos imemoriais, ali haver residido um homem de Deus, quem sabe um santo benfeitor. Esse detalhe histórico foi naturalmente atropelado pelos nobres vereadores, afeitos a práticas mais profanas. Não fosse assim, o incógnito clérigo não teria sido importunado. O princípio ativo do bispo genérico do Paraíso não foi eficaz o bastante para exorcizar a homenagem que se quis prestar a um cupincha de vereador, provavelmente envolvendo uma negociata com dinheiro público, em troca de algum favor político.
O fato é que, à revelia da santa madre igreja, Sua Excelência Reverendíssima Anônimo recebeu extrema unção e a rua do bispo (com minúscula mesmo já que o santo não era forte) passou a ostentar o pomposo nome, que conserva até hoje, de Rua Desembargador Eliseu Guilherme. As placas afixadas nos muros das casas, que outrora estampavam aquele prosaico nome de apenas cinco letras, foram substituídas por outras com visual mais arrojado e modernoso, passando a estampar a nova e quilométrica denominação, onde dezenas de letras se atropelavam para não ficar de fora daquele nome que ninguém conseguia decorar. Os encontros futebolísticos, agendados para a rua do bispo, passaram a ser marcados ‘para a esquina’.
Pesquisei, recentemente, no Google para tentar descobrir quem foi o “Desembargador Eliseu Guilherme”, essa brilhante figura histórica capaz de embargar do bairro o tão querido nome episcopal. Nada! Retirei o título honorífico para ver se, dele desembargado, algo aparecia. Tampouco. Centenas de referências surgiram da busca, mas nenhuma indicando quem fora o tal sujeito. Todas se reportavam, isso sim, à Rua Desembargador Eliseu Guilherme: lojas, mapas, indicações de proximidade. Desembargador Eliseu Guilherme passou a ser um importante ponto de referência, sendo por todos papagueado, mesmo sem se saber quem era a figura. Cheguei à conclusão que, sem embargo, o desembargador é um ilustríssimo desconhecido. Seu nome passou a ser notório apenas no bairro do Paraíso e adjacências, em virtude da circunstância de substituir o bispo, não em suas funções eclesiásticas indelegáveis, mas como titular daquela rua de nobre localização. Ninguém sabe quem foi o indivíduo, mas todo mundo sabe o nome de cor, por força das conjunções geográficas. Caso se chamasse Rua Lindulfo Celidônio Calafange ou Rua Placenta Maricórnia Doroteia , teria o mesmo efeito prático, anestésico e cerimonioso . Bela homenagem fizeram ao doutor Eliseu...
Sendo, por natureza, um perseverante crédulo na boa índole da raça humana, faço força para acreditar que fosse o desembargador um homem honrado, de caráter ilibado, que desembargava com incansável precisão e justiça salomônica as demandas que tinha a incumbência de, por dever de ofício, apreciar. Apesar de quê, cá entre nós, estas supostamente nobres qualificações jamais constituíssem motivo para conferir nomes de ruas, pontes ou viadutos a quem quer que seja. Basta ser amigo de alguém importante ou membro de uma entidade influente para que seu nome seja, sem denotações católicas ou institucionais, imposto administrativamente pela pena definitiva de ato perfeito do prefeito, a pedido de algum vereador da base aliada, provavelmente um dos piores e mais fisiológicos dentre eles. Aquele cuja vereança, na falta de projetos de interesse da comunidade, se limita a freneticamente batizar, sem rituais litúrgicos, nomes de vias públicas para agradar seu curral eleitoral e mostrar serviço à altura de sua insignificância legislativa.
Como normalmente essas homenagens não passam de uma tremenda embromação, é bom que se saiba que grande parte das figuras honorificadas, encontradas aos montes em placas nominativas da malha viária, provém de grupos sem muito caráter e espírito público, que precisam de conchavos com vereadores inoperantes para ter o seu nome cravado numa via qualquer, inflando de orgulho a família do agraciado, ao ver seu sobrenome eternizado em placas que deveriam ser apenas e tão somente de orientação para pedestres e motoristas.
Seria ótimo esclarecer a população que, afora personalidades de importância indiscutível na memória do povo, como artistas e figuras históricas ou públicas de relevância, algumas controversas (alguém gostaria de morar numa pretensa Rua Hitler, Praça Pinochet ou Largo Garrastazu?), a maior parte dos homenageados em ruas não passa de bons picaretas, amigos de políticos corruptos. Excetuam-se, lógico, alguns que injustamente deixei de me referir por ignorância.
Mas, enfim, pode ser que esteja empenhado nesta insana e inútil cruzada para recuperar o título sagrado do pontífice anônimo, cometendo, repito, uma irreparável injustiça com o Doutor Guilherme. É possível que o homenageado fosse alguém de bem, alheio às injunções espúrias que se fizeram em seu emplacado nome. A verdade é que lhe criei certa antipatia, talvez improcedente, confesso, pelo fato de, mesmo morto, ter privado o nome original daquela rua tão marcante de minha infância. O homem...nageado que, há décadas deixou o reino dos viventes e dos políticos, deve estar se remoendo no caixão por ser tratado de maneira tão vil e descortês por esse escriba fariseu mal informado. Preferiria talvez vir o desembargador esse assunto desembargado de polêmica. A culpa, justiça seja feita, não procede de sua pessoa mas de conjecturas ocorridas em outras instâncias. O fato é que o seu nome ficou fincado na Rua do Bispo como eu, insubordinadamente, continuo-a a chamar, indiferente aos olhares parvos dos atuais moradores, desinformados das peculiaridades históricas daquele logradouro.
O tempo passou, o leviatã urbano irrompeu, rendeu os paralelepípedos irregulares, os bondes, os campos de várzea e os prelados anônimos; O Paraíso virou inferno. Lembro-me da Rua do Bispo com saudade...
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