quarta-feira, 18 de setembro de 2013

DIGNÍSSIMO CANALHA



Pelo presente instrumento, venho dirigir-me a vossa excelência. Com minúsculas e na segunda pessoa, pessoa de segunda que és, mauricinho de nariz empertigado. Tu, que te ocultas, sorrateiro, por trás dessa impecável e pretíssima toga funesta. Tu que recebes aprumado a reverência do povo de joelhos à espera de tuas soberanas e irretocáveis decisões peremptórias. Tu que estás imbuído da divina prerrogativa, intransferível e vitalícia, de deliberar sobre o destino dos homens que habitam o mun­do dos vivos, já que o dos mortos foge à tua jurisdição, instância suprema à do teu supre­mo (embora nutras anseios em manter paridade e equiparação divina com Aquele que exerce tal competência). Tu que reclamas indignado por direitos inalienáveis e vives na intimidade inescrutável de tua vida pri­vada de práticas inconfessáveis. Tu mesmo, nobre calhorda, que de tanto exercer o ofício de julgar os outros, passaste a te julgar acima dos outros.
Venho oficiar-te, honorável patife, que encontro mais retidão e honra na palavra espontânea e honesta que brota do coração de um humilde homem iletrado do povo que no alfarrábio que sustém tuas áridas, infindáveis, mirabolantes e ordinárias sentenças ordinárias. As mesmas que apões em papel pergaminho com letras douradas, fazendo-as constar dos anais onde exibes tua soberba grandiloquência farisaica e tua rocambo­lesca sapiência estéril.
Sem qualquer constrangimento, amealhas recursos subtraídos do povo injustiçado para manter intacto esse intrincado e indecifrável sistema, tão inócuo quanto iníquo, que qualificas cinicamente de Justiça, a fim de cobrir com aura de magnificência e infalibilidade essa espeta­culosa e suntuosa pantomima patética e embusteira que estarrece as legiões dos sem-justiça desse país, mantidas sob o jugo do teu julgar.
Cultivaste esse interminável cipoal de leis, decretos, normas, códigos, tratados, regimentos, resoluções, regula­mentações, pareceres, dispositivos e medidas provisórias, para reservares a ti próprio o monopólio do conhecimento e das práticas a ti outorgadas tautologicamente “por lei”, afastando o povaréu inculto de teu demarcado territó­rio. Para que, na mesma medida em que amplias a doutrina do direito, reduzas o primado da justiça.
A chave de tua inoperância chama-se prazo. Conside­raste, eminente pulha, que, após décadas de espera, a sentença já foi proferida, independente do transitado em julgado? Abstrais, emérito canalha, a variável tempo sob pre­sunção de que o tempo é uma mera ‘questão de tempo’. Adias, protelas, procrastinas, prorrogas, retardas, demoras, protrais, diferes, pospões, alongas, espichas, espacejas, alastras, esticas, dilatas, intervalas, encompridas, acresces, amplias, expandes, empurras com a barriga. Pois, então, devo informar-te, distinto safardana, que quem aguarda por anos, seja nutrindo a raiva da privação de benesses não fruídas, seja gozando do deleite de penas não cumpridas, já é repositório da sentença, seja esta qual for. Em meio a tantos réus, jurados e testemunhas, apenas um deve ser declarado culpado em todas as instâncias: tu, criatura ignóbil.
Sai da tocaia, egrégio velhaco. Desce desse palácio de letras, capítulos, parágrafos, alíneas, incisos, caputs e cláusulas em que te enclausuras. Cumpre salientar, excelentíssimo pústula, que as cruas ruas, inobserváveis das janelas do palácio que ergueste (sem decurso de prazo) para te isolares da re­alidade de fato e de direito, estão repletas de malfeitores que levianamente livrastes das masmorras. Não por um senti­mento benevolente de perdão ou por uma crença abnegada no poder de recuperação humana. Mas por um ardilosa e oblíqua interpretação das normas vigentes. Delinquentes de toda a es­pécie a quem remiste da pena, hoje libertos de punição, zombam, sob tua retumbante indiferença, dos tolos que se pautam em princípios e honradez.
Vivem os justos à margem das formalidades legais que usas para agrilhoar os cidadãos, a fim de emparelhares todos pelo mesmo nível de calhordice de que imaginas serem, por na­tureza, dotados. Por certo, espelhando tua maneira de te com­portar e de enxergares os homens para necessitarem de tua mediadora e interesseira presença.
Sob o manto do teu venerável ‘estado de direito’, corruptos, patifes, ladrões de todas as espécies ascendem aos postos de direção com a tua serena condescendência. Mais: com a tua cruel cumplicidade. São estes que tratas com a máxima leniência, amparando-os com a força irrefutável das brechas da lei, aplicando-lhes impiedosamente draconiana indulgência e into­lerância zero. Cobrindo a impunidade com o manto legalista da imu­nidade.
De quem é a culpa? “Dos legisladores, do governo, da polícia, da falta de juízes, da falta de vagas no sistema prisional, da falta de investimento, da má distribuição da renda, do desemprego, da falta de políticas públicas, dos baixos salários, da alta dos juros, do neoliberalismo, da crise do euro, da colonização portuguesa, da gripe suína, do derretimento das calotas polares”, bradas indignado. Tu, homo vermis, és o único triplamente qualificado como “not guilty” nessa história. Justo tu! “Por falta de provas”, provas.
Todo teu empenho é de não punir. Inocentes ou culpa­dos, pouco importa. ‘In dubio pro reo’, desde que teus honorá­rios sejam quitados com correção, exatidão, integri­dade e... justiça.
E assim, pelos mais variados pretextos, vais libertan­do das grades todos os poderosos, reservando os horrores dos calabouços aos despossuídos que não participam do pecúlio que sustenta a devassidão moral que apadrinhas e consagra esse país como o paraíso da impunidade.
Deixa de hipocrisia. A quem pretendes enganar dizen­do que és a fonte da Justiça? Teu ofício é apenas advogar em prol de vermes, devolvendo­-lhes em serviços pérfidos o vil metal que banca o suntuoso padrão de vida que ostentas. A verdadeira justiça é o oposto de ti. É tornar o mundo mais digno, as pessoas olhando-se de frente, sem dissimulações, com confiança mútua. Prescindindo de teus sórdidos préstimos.
Justiça seja feita: quem te sustenta, respeitável biltre, são apenas os safados. Crápulas que, dispensando nobres considerações éticas, estudam teus intrincados preceitos e se formam doutores para assimilar os meios legais, penais, constitucionais e amorais de permanecer impunes e qualificarem-se a ingressar em tuas ro­dinhas infames. Partilharem do papo do cafezinho do fórum. Onde, restritas às indevassáveis paredes que os protegem, ro­lam torpezas inimagináveis. Tornam-se teus amigos e cupinchas. Uma corporação fechada de rábulas parasitas. Justamente!
Os princípios de retidão e civilidade, trazemo-los dentro de nós. Num mundo de justos, tua justiça não se ajusta. Gente honrada entende-se entre si, sem necessitar da tua protocolar intermediação. Bastam os princípios. Quem carece de lei são os que dela vivem à margem. Se para os honrados, é des­necessária e para os bandidos, ineficaz, para os da escória que integras, é verba no bolso.
Data vênia, ilustríssimo, vai pra p* que te pariu.




terça-feira, 10 de setembro de 2013

UM LUGAR CHAMADO ESPERANCINA



– Atenção! Vamos dar início à nossa audiência com representan­tes dos três poderes, para discussão das mudanças em nosso município. Como é sabido, o povo de Esperancina, em protesto contra décadas de corrupção e impunidade, saiu às ruas para exigir mu­danças e ocupou os prédios públicos. O prefeito, o vice e seus secretários fugiram para os municípios vizinhos, para não ser caçados (com ç) pelos crimes de malversação de recursos pú­blicos, corrupção ativa e passiva, fraudes em licitação, evasão de divisas, enriquecimento ilícito, sonegação fiscal, extorsão, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, apropriação indébi­ta, prevaricação, estelionato, formação de quadrilha, associa­ção com o crime organizado, desvio de merenda escolar, tráfico de entorpe­centes, estupro e pedofilia. Pretendem reaver o poder através de ação de reintegração movida por seu advogado, Marcius Tomaso Bostus, que alega ilegalidade na obtenção das provas e ausência de flagrante. Solicita foro privilegiado e julgamento especial pelo STF. Responderão pelos crimes em liberdade.
... O presidente da Câmara e três dos nove vereadores, também pegos com a mão na massa, tiveram de renunciar para não ser cassados (com ss) pelo povo indignado. A Câ­mara Municipal teve que aprovar, em regime de urgência, sob pressão popular, um novo decreto que transfere o poder para o Conselho Municipal de Transição formado por munícipes escolhidos por consenso, sem nenhuma objeção, pelo povo concentrado na Praça da Matriz, na semana passada.
... Ofereceram-se como Conselheiros  e foram aprovados por aclamação, sem direito a qualquer remuneração salarial: o Sr. Ma­noel, dono do bar da Praça da Matriz; o Sr. Pedrão, o moto­rista de ônibus escolar mais idoso da cidade; a dona Adelaide, aposentada, que cuida voluntariamente dos jardins da praça; a Dona Gertrudes, que tem a lojinha de armarinhos na Rua Caminho da Roça; o Sr. Chicão, goleiro do time de várzea da cidade; o Sr. Nenê, técnico em informática, que fez o site da Prefeitura; a Sra. Maria José, professora primária da escola municipal; a Sra. Patrícia, dona do único ateliê da cidade; o Dr. João Batista, médico pedia­tra; e o padre Santelmo, recentemente empossado na paróquia central.
... Eu, vocês sabem, na ausência do prefeito, do vice e do presidente da Câmara, fui escolhido pelo Conselho. Sou o Aristides, o Tide, técnico em contabilidade, nomeado como prefeito inte­rino até novas eleições munici­pais, dentro de três meses.
... Vou, de início, fazer um protesto individual con­tra a escolha do goleiro Chicão para o Conselho. Depois do frango que ele tomou na partida contra aquele timeco de Ria­chão de Dentro, devia ter ficado em concentração treinando para não dar mais vexame. Falaí, Chicão! O que é isso, meu? Aquele chute de falta, com a bola vinda pelo alto, dava para ter socado para escanteio. Mas, no final, conseguimos empatar. Está perdoado! Estamos de olho, hein?
... Continuando... Ficou aprovado pelo colegiado e eu, na qualidade de prefeito, sanciono, que o orçamento para o próximo exercício vai ter a seguinte distribuição: à Câmara Municipal fica destinado 1% da receita total do município; à Procuradoria, tam­bém 1%; para os órgãos do município,  mais 1%. Os 97% restantes, vão ser aplicados em centros de saúde, escolas, creches, moradia, saneamento, praças de esporte e pagamento de salários de professor, médico, e outras profissões de primeira necessidade.
– Nobre prefeito interino, sou o representante dos ve­readores de Esperancina nessa audiência pública. Meu nome é Eneas. Sou suplente empossado do vereador Ausêncio Ro­balo. Tenho em mãos alguns números que, preocupado, submeto a V. Sa. A arrecadação do nosso município esperancinense nesse ano vai ser por volta de 100 milhões de reais. Nosso minguado salário é de 14 mil por mês. Vezes 15 que é o número de salários que recebemos anualmente, fruto da nossa incansável labuta em prol do labo­rioso povo desse promissor município, dá 210 mil anuais. Multiplicando-se por 9 vereadores que somos, resulta em 1,89 milhão. Mas não podemos esquecer das nossas mordom..., digo, da ajuda de custo para as necessidades bá­sicas: auxílio moradia, auxílio viagem, plano de saúde, correspondência, gráfica, revista Caras, linhas telefôni­cas, internet, TV a cabo, combustível, segurança, motorista, pedicura, engraxate, personal trainer. Mais a troca da frota que já tem 2 anos, para modelos mais novos, blindados, com airbag duplo, freios ABS, bancos de couro, ar refrigerado, TV, GPS, Bluetooth e computadores de bordo. E como fazer para que cada parlamentar abra mão de seus imprescindíveis assessores de confiança, pessoas de nossas dignas famílias, gente gabaritada, de respeitabilidade na comunidade? Todos cidadãos de bem, que dependem dos exíguos vencimentos para viver.
– Nobre vereador. Sou um mero empregado. Não tenho muito conhecimento desses assuntos legislativos. Só sei fazer balanço. De um lado, ativo, de outro, passivo. Contas a pagar, despesas diferidas, demonstrativo de resultados. Meu pa­pel aqui é repassar verba. Bom, não tenho todo o tempo do mundo para o senhor. Próximo!
– Sou representante dos procuradores, Sr. prefeito, e venho trazer nossa indignação ante essa medida descabi­da que carece de fundamento legal, não devendo prosperar. Permissa vênia, que história é essa de cortar nossos honoráveis honorários, nossa sagrada grana protegida por cláusula pétrea e nossos privilégios transitados em julgado?
– Digníssimo amigo, acho que o nobre doutor não en­tendeu. Agora quem manda por aqui é o povão, cansado de desvios e maracu­taias. O negócio é simples: eles que pagam as contas, eles que decidem e está decidido. Vocês ficam com 1%.  Qualquer objeção, entrem com um mandado de segurança com liminar e medida cautelar contra o povo de Esperancina.
Data vênia, isso é um ultraje doloso ao equilíbrio dos três poderes, ao estado de direito e à Constituição de 1988. Nosso salário é protegido por isonomia e privelegium immunitatis, pelo direito adquirido e pela coisa julgada. Iremos ajuizar com agravo e impetrar ação ad cautelum, com efeito suspensivo para homo­logar em última instância o acórdão do STF.
– Por mim, os senhores podem ir até ao Papa. Próxi­mo!
– Sr. prefeito, sou o representante das secretarias e autarquias municipais. Ficamos sabendo que agora nossos ór­gãos só receberão 1% da verba do município. Somando todo o dinheiro para despesas de pessoal e itens imprescindíveis como papel higiênico, tinta de impres­sora, cafezinho, incenso, jontex lubrificado, pipoca de micro­onda, vela de bolo, salame defumado, revista de sudoku, caipi­roska etc. já dá uns 50%.
– Pois é! Como chefe do Executivo, ordeno que se reúnam e estudem como fazer para cumprir as novas normas. As regras estabelecidas pelo populacho são claras. Vocês terão que cortar 98% de tudo o que estava previsto. Mãos à obra!
– Ilustríssimo prefeito, não podemos cortar salários nem colocar funcionário estável na rua. Não é possível mexer desta forma no orçamento!
– Sugiro fazer pagamentos em precatórios. Pa­guem as dívidas com títulos do município com vencimento para daqui a 50 anos, sem correção, quando as coisas já esta­rão assentadas e equilibradas... Quero lembrar que professores, médicos, lixeiros, guardas municipais e ou­tras funções essenciais entram como necessidade básica. Esses continuam ganhando o que ganhavam estando prevista uma correção salarial de 150%, a partir do mês que vem, para estas categorias, tão necessárias para nossos cidadãos.
... Bem, senhores, é isso. O sol está começando a ficar forte. Está chegando a hora do almoço. Não esqueçam que hoje à noite tem festa do milho na Praça da Matriz às 19:30. Tragam as crianças que vai ter também doce e bolo.
... Atenção! Acabo de receber uma notícia preocupan­te. Chegou há pouco uma notificação do Palácio do Planalto. Parece que Brasília está apreensiva ante o rumo dos acon­tecimentos aqui em Esperancina. A nota fala que a ordem institucional foi quebrada e nos ameaça com uma intervenção federal para reconduzir ao cargo os antigos salafr..., digo, mandatários para “restabelecer a vontade popular manifestada nas urnas e recompor a ordem democrática”. Tenho in­formações de que está sendo preparado um batalhão de cho­que para reintegrar à força os destituídos. Bom, gente. Enquanto durar esta fase, façamos o que o povo de nós espera.
...Esperancina não pode morrer