Que raiva que a raiva dá!
Numa desatenção, num desleixo, num
vácuo, num crescendo, ela surge. Calma. E furiosa. E, antes que eu me dê conta,
toma conta.
Instala-se feito um vírus. Vem de fora,
me come e me consome por dentro. Agiganta-se, murcha, morre. Ressuscita. Me
toma de mim. Me tira do sério. Me tira do Sérgio.
Ora me paralisa, ora me impulsiona. Ora
pra glória, ora pro abismo.
Sem raiva, mal faço. Com raiva, faço
mal, de qualquer jeito. De qualquer jeito, mal me faz. Mal me faço.
Mau com ela, pior sem ela. Quem manda
ela existir? Que raiva!
Me transtorna e me transforma.
Posso ser quem não seria. Posso ser
quem não queria. Posso ser quem não podia. Posso ser quem não devia.
Afinal, sou seu dono ou seu criado? Seu
carrasco ou seu capacho? Sou eu que tenho a raiva ou é ela que me tem?
Está no coração? Na mente? No cérebro?
No sangue? No estômago? Na adrenalina? Na carótida? No miocárdio? Em cem
trilhões de células? Raivosas.
Como tirar a raiva? Com calmante?
Cidreira? Maracujá? Meditação? Oração? Simpatia? Terapia? Cirurgia? Lobotomia?
Homeopatia? Cromoterapia? Radioeletrocardiolaringotraqueobroncoscopia?
Boto ela pra fora com a lágrima? Com a
mordida? Com o soco? Com o suor? Fazendo amor? Grito de dor?
Só sei que é preciso tirá-la,
extraí-la, extirpá-la exterminá-la... Externá-la, quem sabe?
Morrendo! Aí ela vai junto. Ou fica na
alma. Me assombrando do outro lado. Um fantasma vivo (e raivoso) no mundo dos
mortos.
Escrever é o que me resta. Vingando-me,
discorro sobre ela. Pra deixar ela com raiva. Dou um trato, tratando dela, num
tratado sobre ela. “Caracterização da
raiva: análise e avaliação de parâmetros intraespecíficos de desempenho nas
técnicas de degradação estrutural aplicadas sobre a prevalência do sistema
regulatório de interações associado aos efeitos funcionais das ações e
formulações ad hoc de diversificação comparada em amostras sequenciais
randômicas otimizadas no metabolismo humano”. Até que, da verborragia, ela
se encha. E pare de me encher.
Vou me concentrar: não estou com raiva,
não estou com raiva, não estou com raiva... JÁ
DISSE QUE NÃO ESTOU COM RAIVA, PORRA!
Vejo um lago suave, calmo, azul, águas
cintilantes. Da hora. Irado! A raiva não está. Onde foi parar? Cadê-la? Deve
ter-se afogado? Submersa em águas tranquilamente revoltas. Um vulcão dentro da
água. Onde cê foi parar, sua peste?
Raiva, devolva-me a mim.
Raiva, me deixe ser-me. Ou só me deixe.
E se eu contar até dez? Ou em dez ‘des’:
desvanece, desaparece, desocupa, desgruda, despacha, desgarra, desatrela,
desapega, desinfeta, desopila... Desgraçada!
Sai raiva, sai!
Ela não sai? Então saio eu.
Crônica extraída do Livro “O QUE DE MIM SOU EU”
Crônica extraída do Livro “O QUE DE MIM SOU EU”