Com respeito e
orgulho, apresento o meu digníssimo porão. Mede ele 2 por 2, mais ou menos.
Cada um dos 4 m2 do meu porão tem sobre si 2,20 metros de altura. O
compartimento abriga, portanto, aproximadamente 9 m3 de ar e de luz.
Luz e ar que foram quase que completamente expulsos para dar lugar a toda sorte
de objetos provindos dos mais variados confins. A altura deve ser enfatizada,
mais do que o é no resto da casa, ou melhor, naquilo que não é o resto.
Porquanto ninguém personifica melhor a categoria ‘resto’ do que o supracitado. Frente a ele, até a privada da área
de serviço ganha ares de nobreza. Na escala de importância dos aposentos, o
pobre do porão é o permanente postulante à lanterna, rebaixado que já se
encontra.
Ainda que relegado
a uma condição subalterna, é, por uma dessas inexplicáveis contradições
habitacionais, mais exigente naquilo que o concerne. Apesar de não discriminar
dos objetos pretendentes a nele se expatriarem nenhum requisito quanto à
procedência, coloração ou característica física, impõe a estes a clara
especificação, não apenas das dimensões de comprimento e largura, mas também as
da altura. Para garantir o visto de entrada no porão, têm tais objetos de
apresentar, em seu passaporte, explicitado seu volume. Essa seleção é rigorosa e não há favorecimentos.
Aprovada sua
admissão, os objetos ganham, em sua nova moradia, literalmente, outra dimensão,
passando a estamparem sua real importância tridimensional, mensurada em metros
cúbicos. Despem-se e despedem-se assim de sua antiga funcionalidade e passam à
condição comum de ‘trambolhos’.
Todos,
independente de sua origem, têm o mesmo valor relativo, proporcional a seu
tamanho. Valendo-nos da terminologia marxista, poderíamos afirmar que os
objetos do porão ficam desprovidos de suas intrínsecas características físicas
e utilitárias, responsáveis pelo seu valor de uso, sobressaindo-se o valor
social do m3, determinado pela superestrutura associada ao estágio
das forças produtivas do senhorio. Naquela micro-sociedade vigora um regime exemplarmente
igualitário, comunista, sem classes. Todos são, por baixo, nivelados e
equitativamente designados como ‘cacarecos’.
Sua característica
principal, ao serem acomodados em seu novo lar, passa a ser seu tamanho, não
mais sua serventia. Enquanto na residência de origem, a pergunta habitual que
os introduzia era “combina?”, “é
bonito?”, “é de qualidade?”, "é útil?", “é funcional?”, em
relação ao porão, a indagação determinante passa a ser “cabe?”
Um tapete 3 por 3,
por exemplo, deixa de medir os 9 m2 que garbosamente ocupava na
sala. Ao atravessar a porta de serviço e adentrar no porão, decai à mesma
humilhante condição cilíndrica de 0,12 m3 que originalmente
desempenhava na loja onde foi adquirido, abatida a depreciação física que deve
ter corroído a parte nobre de sua exuberância, no período compreendido entre as
datas da sua compra e de seu amargo descarte.
Reza a lenda que,
tal como ocorre em Toy Story, à
noite, fora do alcance dos vigilantes e perscrutadores olhares humanos, os
objetos inanimados ganham vida no porão. Talvez conversem entre si,
rememorando, com saudade, os magnânimos momentos quando eram imprescindíveis e
venerados. Cada um tem uma triste história a narrar a seus companheiros de
infortúnio, que remonta da sua concepção, fabricação, elaboração, passando por
seu uso, o glorioso apogeu, até advir o inexorável período de declínio e o
debacle físico que antecedeu a melancólica situação em que se encontram. Assim
como presidiários em celas contíguas no corredor da morte, à espera do sinistro
e inevitável destino que os aguarda, trocam confidências, estabelecem vínculos
e comungam da dor por estarem relegados aos limites daquele ambiente inóspito,
esquecido e quase nunca acessado pelas vivas almas. Recordam-se dos tempos de
esplendor, onde podiam ser, com orgulho, ostentados. Mas não cedem à
desesperança. Para não caírem no mais negro desespero, sonham com um futuro
auspicioso onde a mudança de tempos e os descaminhos imprevisíveis da moda
possam reabilitá-los e recompor sua essencialidade, podendo ser, novamente,
objeto de admiração e ambição, sob novas bases. Quem sabe, até como valiosas
antiguidades.
Com tais
qualificações, o porão não chega a ser propriamente um cômodo. É quase um incômodo. O que se passa em seu
interior, é motivo de vergonha, como denotam as expressões pouco dignas ‘porões do sistema’ ou ‘porões da ditadura’. Muitas vezes, são
palcos de rituais satânicos, sacrifícios e outras aberrações humanas que pioram
ainda mais a imagem que se faz desse recinto já tão segregado, que, ainda por
cima, digo, ainda por baixo, fica no caminho para o inferno.
(continua...)
(Texto extraído do
livro O QUE DE MIM SOU EU)
À Cíntia