Os porões
fazem lembrar lugares furtivos onde se ocultam produtos do roubo, atividades
ilícitas, fugitivos da resistência armada, vítimas de sequestros e cadáveres
recém encomendados. Com esses escusos empregos que deles se faz, somado à
habitual falta de cuidados e de limpeza em sua manutenção, acabam se
constituindo em habitats perfeitos para baratas, aranhas, cupins, ratos e
outros animais escrotos que sobreviverão à hecatombe nuclear.
Por outro
lado, a ameaça do holocausto atômico pode vir a reabilitar esses execrados
aposentos subterrâneos como última esperança de sobrevivência da raça humana,
reserva de vida no planeta. Esse espaço agourento nem mesmo a radioatividade
ousa invadir. Tal redentora perspectiva não é, todavia, suficiente para
recobrar sua desgastada imagem ante as honoráveis famílias.
Ninguém
pensa em mostrá-los às visitas. “E aqui o nosso lindo porão: latas de tinta,
tênis furado, ladrilhos de banheiro, roupas velhas da vovó, desentupidor de
privada, raticida, caixa de arruelas, uma mala sem alça, o sofá roxo rasgado,
baralho de mico, LPs Xou da Xuxa, um bambolê torto, livros de aritmética,
coleção Barsa juvenil, revistas Sentinela e Amiga, um mapa de Aparecida, três
vidros de maionese vazios e enfeites de presépio. Adiante uma linda barata
morta. Aceita mais um pedaço de bolo de tâmara?”
Alguns
dão-lhes um fim mais digno, transformando-os em adegas ou estúdios. Uma exceção
às regras dos porões, tanto que, quando é trocada sua finalidade, o nome ‘porão’
é imediatamente suprimido.
Nas antigas
residências, o porão era item obrigatório, não apenas como local para guarda de
objetos e mantimentos, mas também como refúgio, proteção contra intempéries e
entesouramento de valores. A arquitetura moderna, mais funcional e minimalista,
defrontando-se com a problemática da escassez de espaço, tentou relegá-lo aos
porões da história. Todavia, percebe-se que outros cômodos, como o quarto de
empregada ou a área de serviço passaram a desempenhar a mesma função de
despensa, indispensável. O que demonstra que os tempos não extinguiram a
necessidade que motivou sua concepção original.
Mesmo tendo
o porão sido suprimido das novas residências, assim como o foram os sótãos
(ainda populares em filmes de terror), como seus préstimos ainda eram
requisitados, criaram nova versão, localizando-os, no caso de edifícios, em
minúsculos espaços ao lado da garagem, possivelmente para sanar algum problema
de engenharia. Aliás, esse é o meu caso. Conferi a condição de ‘porão’ a uma
espécie de antro adjacente ao estacionamento do prédio em que resido, o qual
cada condômino pode utilizar para depositar suas inutilidades.
Essa
confusão de nomenclatura explica-se pelo fato de que o conceito ’porão’,
outrora caracterizado pela sua subterrânea localização geográfica, passou, em
alguns casos, a ser tipificado pelo ofício que desempenha. O porão,
independente de sua localização, é apenas depositário de bugigangas e afins. Ou
seja, pelos entulhos e bagulhos que nele se porão.
(continua...)
(Texto extraído do livro O
QUE DE MIM SOU EU)
À Cíntia