No I Ching, além do Caldeirão,
o único dos 64 hexagramas que se refere a objeto feito pelo homem é o de número
48, O Poço. Ora, o poço nada mais é do que primo de segundo grau do porão,
guardando com ele alguns evidentes elementos comuns (buraco, escuro, subsolo).
Diz o oráculo chinês: “Pode-se mudar uma cidade, mas não um poço (...). O poço
representa a fonte que atende às necessidades primordiais dos seres, e
permanece inalterada desde a mais remota antiguidade. Mudam-se os usos e os
costumes, os estilos de comportamento e as expressões culturais, mas a forma do
poço continua a mesma, simbolizando as necessidades imutáveis da existência
humana”. Os atributos que o sagrado livro milenar associa ao poço poderiam ser
perfeitamente imputados para o porão.
Assim como
seu primo zen, o porão jamais deixará de existir enquanto a sociedade estiver
fundamentada na célula mater da família, pois atende a uma carência básica
desse grupamento humano. O porão não é um simples aposento do núcleo familiar.
É a materialização da necessidade que as famílias têm de conservar parte do
passado e não se desvincular de coisas que um dia tiveram serventia. Se hoje
não são mais úteis por suas características originais, passaram a sê-lo por
atenderem a uma nova necessidade. A de preservar algo representativo do
passado, a fim de ajudar a fixar nossa identidade como seres viventes providos
de memória e sentimentos de saudade e gratidão.
Segundo o Feng
Shui, o porão simboliza sentimentos enraizados em nosso subconsciente. Pode
representar ainda desejos reprimidos.
Assim como ocorre com esses sentimentos, não é algo para ser aniquilado,
extinto. Deve ser mantido organizado, limpo e bem iluminado para impedir a
fixação de energias negativas.
Tal como os coveiros,
os advogados, as putas e seus filhos, os políticos, os porões são discriminados
por todos mas ninguém pode viver sem seus préstimos. Desempenham um papel
importante na sociedade. Lidam com coisas que não fazem mais parte do nosso
cotidiano. O porão é o mal necessário, o patinho feio da casa, para onde são
jogados os restos dos desejos. Sem eles, como poderíamos nos permitir protelar
ou deixar de exercer nossas difíceis decisões de nos desapegarmos de certos
objetos? Na dúvida: joga, não joga? Vai pro porão.
A cada limpa geral, os
objetos úteis e bonitos ganham, por seus méritos, um lugar ao sol na
residência. Os inúteis, feios, desgastados e quebrados vão para o lixo. Os
restantes, que naquele momento, não se enquadram com precisão em uma destas
categorias, vão para o porão. E dá-lhe a entulhar os 9 m3, o tamanho da nossa
indeterminação. Os que dispõem de compartimentos com 18 m3, podem dar-se ao
luxo de serem duas vezes mais indefinidos.
Se dispuséssemos de um
espaço enorme para o porão, todo ele seria utilizado. O porão pode ser
subterrâneo e subvalorizado mas jamais é subutilizado. Com assiduidade é mudada
a disposição dos objetos nele contidos para ver se não entra mais alguma
coisinha, de modo a otimizar sua ocupação. Cada centímetro cúbico é aproveitado
para impedir que algo seja sacrificado. Trata-se de uma contradição: enquanto
os ambientes mais nobres da casa, frequentemente mantêm espaços vazios para
permitir a locomoção, dispondo-se os objetos distantes uns dos outros, o depreciado
porão comporta-se como o próprio coração de mãe, servindo de guarda para tudo
quanto é tranqueira. Cada pedacinho é disputado com unhas e dentes. Fosse ele
dez vezes maior, dez vezes maior seria a utilização que dele se faz. Ou seja, o
porão, além de criar o tamanho de sua própria ocupação, ou seja 100%, cria
também o grau de indeterminação que nos é possibilitado ter. De onde se
depreende que porões pequenos obrigam-nos a tomar decisões mais dolorosas.
Abriga os objetos que
se situam no limbo próximo ao meio da escala, cujos extremos são o
imprescindível e o lixo. Uma tênue região entre o necessário e o desnecessário.
Não são suficientemente importantes para ganharem um lugar nas áreas mais
nobres (nem nas menos) do lar. Mas, ao serem preteridos de todos os demais
aposentos, a opção ‘lixo’ também é descartada. É cruel demais. Nossa
consciência não consente com tamanha maldade. Acaba indo pro purgatório do
porão, onde cumprirá castigo eterno por não ter logrado manter uma relação de
intimidade com o senhorio, mas... merece uma segunda chance. Quem sabe no
futuro?
(Texto extraído do livro O
QUE DE MIM SOU EU)
À Cíntia