Nesse dia que é pretensamente
dos mortos, é a você que se foi, Bandida, que dedico essas inconsoláveis palavras
porque é você que é o propósito de minha tristeza de hoje.
O sol há pouco relutava
em brilhar, tentando forçar espaço por entre as renitentes nuvens que buscavam
conferir a austeridade que a solenidade da data reclamava. Quase me fez
esquecer que hoje deveria ser um dia de melancolia ou ao menos de reverência. A
notícia da sua prematura morte me trouxe a apropriada consternação.
“Hã? Como assim prematura?”,
diriam. Pois se você já carregava uns 16, 17 ou 18 ou sabe-se lá quantos
extensos anos, mais que suficientes para cumprir sua missão canina aqui no
planeta em que os homens e não os bichos determinam a idade para completar o
ciclo de uma vida bandida.
Pois para mim que a
conhecia há um ano e pouco, sua inesperada morte foi sim bastante prematura. Os
anos transcorridos não dão a escala adequada para mensurar o grau de tristeza
que ora me acomete. Nesse pouco e descontínuo
tempo de convívio, eu nem mesmo aprendera a brincar direito com você, separados
que estávamos por 20 km de Via Anchieta. Nem sequer sentira o vigor simulado de
seus dentes enfraquecidos quando você fingia que me mordia na troca de eu
fingir que a atiçava. Fingindo daqui e fingindo dali, criamos sem fingir uma
incipiente cumplicidade que a maioria dos humanos não poderia de verdade entender.
Você se foi. E só deu um
repentino e último ‘ai’ ou talvez um ‘au’ de adeus avisando que estava partindo.
Não pedindo um carinho, não pedindo uma atenção, não pedindo um cuidado, não
pedindo, não pedindo, não pedindo. Despedindo, apenas.
Era só seu coraçãozinho
débil dando um último e definitivo adeus. Um enfarte talvez a tenha levado. Vai
saber! Nem mesmo será feito um laudo ou uma autópsia, pois os cães não têm esse
direito humano, conferido a sequestradores,
safados, traficantes, empresários, políticos e toda espécie de bandidos. Nunca aos
cães e às cadelas. Mocinhas ou bandidas.
E, você, sua bandidinha,
achou o jeito certo de ser gostada. No fundo de sua espontaneidade animal e do
alto de seus 16 ou 18 respeitáveis anos de experiência canina, sabia como é que
se conquista a verdadeira afeição das pessoas. Como uma bandida, invadiu
sorrateira, sem ser convidada, o meu coração e me deixou agora tristonho e com
saudade.
Você que nas pizzas mensais
da Zezé, marcava presença em todos os cantos e em todo o assoalho em que estendia
sua preguiçosa presença. Aliás os cantos não eram sua especialidade. Preferia se
instalar nos centros dos aposentos, nos corredores e nas entradas das portas.
Mas estranhamente, embora sua marcante presença fosse sempre notada, você jamais
era enxotada. Porque, assim como as plantas, os retratos e os abajures, você integrava
a parte mais prazerosa daquela casa que por acaso acolhia também uma família.
E enquanto tal casa
perdurar, você será lembrada cada vez que alguém esquecer de tropeçar ao passar
célere da sala para a cozinha ou do banheiro para o quarto, cumprindo os
rituais cotidianos sem sentido e, com sua ausência, mais sem graça.
Disseram-me que muitos
na vizinhança a conheciam, pois você fora no passado um simples mas querido cão
de rua, que prescindia de pedigree para ser por todos estimado.
Carinho e devoção gerais
de que você abriu mão, ao aceitar a oferta de receber um lar e uma família
acolhedores em troca do abdicar de seu habitat natural das ruas, onde você
desfrutava de ampla liberdade. Foi um motivo de honra você ter conferido a
exclusividade da sua companhia tão gratificante.
Tchau, Bandida! Do céu dos
cachorros onde você deve se encontrar, mande um derradeiro e rouco latido para nos
alentar nessa dura missão de viver nosso turbulento dia a dia onde a presença
de cães parece não passar de mera frivolidade.