Encontrei uma
maneira de exercer uma atividade física prazerosa em São Paulo: andar a pé
através das desertas ciclovias. Não era bem a finalidade que almejavam seus
idealizadores. Mas é, convenhamos, uma maneira de promover algum uso para tais
vias que, caso contrário, permanecerão largadas às moscas.
Os pedestres que
só dispunham de calçadas esburacadas para caminhar, ganham agora uma
alternativa segura para exercerem condignamente sua locomoção pedonal: os
leitos das ciclovias (ou “ciclovazias”
como as apelidei). Alheios ao corre-corre alucinante que acomete o resto da
urbe, podem, sem risco de ser atropelados, passear tranquilamente por essas superprotegidas vias, meninas dos olhos da administração municipal. Dá até para
observar as construções pitorescas, as nuances estéticas e a beleza
arquitetônica que essa metrópole (usurpada por habitantes desinteressados e políticos
interesseiros) esconde de seus cidadãos.
Já que o
megalômano programa municipal de dotar a cidade de 400 quilômetros de vias exclusivas
para bicicletas não terá utilização significativa até o próximo século,
poderemos por muitos anos, sem medo ou culpa, fazer uso das ciclofaixas para
exercer longas caminhadas, prática lúdica e saudável a quem antes tinha o
hábito de só se locomover com o auxílio de rodas (duas ou quatro). E com
direito a trazer companhia para papear e um cãozinho a tiracolo.
Tornou-se assim possível
passear serenamente em meio ao turbilhão de carros, espremidos nas pistas a que
foram confinados, cujos motoristas ensandecidos esbravejam por circularem num
ritmo mais lento do que quem vai a pé.
E caminhos não
faltam já que a cidade foi inundada por ciclofaixas por todos os cantos. Isso
gerou um inesperado efeito colateral: o vazio asfáltico. São quilômetros e quilômetros de pavimento
virgem no leito nobre das principais ruas e avenidas sobre os quais podemos
caminhar sossegados por horas a fio, à margem do frenesi de veículos
carburantes alucinados que passam ao lado, exalando gás carbônico e
ressentimento. É possível até mesmo exercer práticas de recolhimento como a meditação,
mentalizando-se estar sobre o tapete vermelho que leva ao Tao.
Vez ou outra, corre-se
o risco de se cruzar com algum ciclista desgarrado que,
com a cordialidade que lhe é peculiar, vocifera um “sai da frente, filho da p(*)”. Faz parte. Indiferente ao
impropério, deve-se fechar os olhos, blindar a mente e retomar, sem estresse,
os caminhos virtuosos da verdade interior que conduzem ao Nirvana, via Barra
Funda.
Alguns podem fazer
falso juízo de minhas palavras, considerando que estou usando de sarcasmo para
boicotar o ousado projeto da Prefeitura de, por decreto, converter São Paulo em
Amsterdam. Nada mais falso. Como ambientalista sempre fui contra a cultura
automotiva e partidário de iniciativas que incrementem o transporte alternativo
não poluente, desde que sejam acompanhadas de bom senso, seriedade,
planejamento, capricho e beleza estética.
A propósito:
gostaria de sugerir ao digníssimo alcaide que substituísse aquelas horrorosas
faixas vermelho-PT por despolitizados e serenos gramados verdes. Por que
não? Além de embelezar e humanizar a
cidade, essa medida apartidária aumentaria a área com cobertura vegetal e
permitiria o escoamento das águas das chuvas que tantas enchentes provocam.
Seria uma forma decente de expandir o alcance desse projeto cicloviário que, por
enquanto, tem atendido a apenas algumas dúzias de paulistanos.
É verdade que tal
medida dificultaria a locomoção das bikes e levantaria a fúria dos aguerridos
cicloativistas que, embora se dizendo ecológicos, não abrem mão do asfalto.
Acostumados a fazer alarde desproporcional contra toda medida que não atende a
suas demandas, certamente iriam perfilar uma tropa de choque em frente ao MASP
e bloquear a avenida Paulista, expediente reiteradamente utilizado pelas
minorias barulhentas para impor sua vontade à maioria silenciosa. Porém o
tráfego automotivo piorou tanto após a construção das ciclofaixas, que os
conformados motoristas sequer iriam notar mais essa manifestação, resignados
que estão a pagar o pato por suas execráveis máquinas poluentes.
A polêmica das
ciclovias divide opiniões. De um lado, os “coxinhas” passaram a praticar exclusivamente
pedaladas ergométricas no ambiente privativo das academias, longe do povaréu.
De outro, os “petralhas” (mais chegados a outro tipo de pedalada) viram-se subitamente
na obrigação ideológica de abdicar de seus hábitos sedentário-cerebrais para defender
ardorosamente o uso das prosaicas bicicletas. Não se conformam com a mania dos
paulistanos de insistir no costume reacionário de utilizar o metrô tucano.
Indiferente à controvérsia,
ao invés de ficar proferindo inúteis brados de indignação contra as
eleitoreiras medidas dos governantes de plantão, prefiro tirar proveito do que elas podem
oferecer de bom. Abrindo mão de todos os veículos, conservadores ou progressistas,
ando a pé pelas ciclovazias, feliz e
despreocupado, sem ser importunado por carros, motos ou... bicicletas.
Quanto a essas
magrelas pobres coitadas, indiferentes à polêmica que se criou em torno de seu
uso e às complexas injunções sobre “mobilidade
urbana das grandes metrópoles”, repousam inocentes nos apartamentos e garagens
de onde só saem mesmo para passear com seus donos nos domingos ensolarados,
quando desfilam felizes pela praia da Paulista.
Adaptado do texto RECICLOVIAS nesse mesmo blog
(julho de 2015)