sexta-feira, 1 de julho de 2016

CAMINHANDO PELAS CICLOVIAS FANTASMAS DE SÃO PAULO



Encontrei uma maneira de exercer uma atividade física prazerosa em São Paulo: andar a pé através das desertas ciclovias. Não era bem a finalidade que almejavam seus idealizadores. Mas é, convenhamos, uma maneira de promover algum uso para tais vias que, caso contrário, permanecerão largadas às moscas.

Os pedestres que só dispunham de calçadas esburacadas para caminhar, ganham agora uma alternativa segura para exercerem condignamente sua locomoção pedonal: os leitos das ciclovias (ou “ciclovazias” como as apelidei). Alheios ao corre-corre alucinante que acomete o resto da urbe, podem, sem risco de ser atropelados, passear tranquilamente por essas superprotegidas vias, meninas dos olhos da administração municipal. Dá até para observar as construções pitorescas, as nuances estéticas e a beleza arquitetônica que essa metrópole (usurpada por habitantes desinteressados e políticos interesseiros) esconde de seus cidadãos.

Já que o megalômano programa municipal de dotar a cidade de 400 quilômetros de vias exclusivas para bicicletas não terá utilização significativa até o próximo século, poderemos por muitos anos, sem medo ou culpa, fazer uso das ciclofaixas para exercer longas caminhadas, prática lúdica e saudável a quem antes tinha o hábito de só se locomover com o auxílio de rodas (duas ou quatro). E com direito a trazer companhia para papear e um cãozinho a tiracolo.

Tornou-se assim possível passear serenamente em meio ao turbilhão de carros, espremidos nas pistas a que foram confinados, cujos motoristas ensandecidos esbravejam por circularem num ritmo mais lento do que quem vai a pé.

E caminhos não faltam já que a cidade foi inundada por ciclofaixas por todos os cantos. Isso gerou um inesperado efeito colateral: o vazio asfáltico.  São quilômetros e quilômetros de pavimento virgem no leito nobre das principais ruas e avenidas sobre os quais podemos caminhar sossegados por horas a fio, à margem do frenesi de veículos carburantes alucinados que passam ao lado, exalando gás carbônico e ressentimento. É possível até mesmo exercer práticas de recolhimento como a meditação, mentalizando-se estar sobre o tapete vermelho que leva ao Tao.

Vez ou outra, corre-se o risco de se cruzar com algum ciclista desgarrado que, com a cordialidade que lhe é peculiar, vocifera um “sai da frente, filho da p(*)”. Faz parte. Indiferente ao impropério, deve-se fechar os olhos, blindar a mente e retomar, sem estresse, os caminhos virtuosos da verdade interior que conduzem ao Nirvana, via Barra Funda.

Alguns podem fazer falso juízo de minhas palavras, considerando que estou usando de sarcasmo para boicotar o ousado projeto da Prefeitura de, por decreto, converter São Paulo em Amsterdam. Nada mais falso. Como ambientalista sempre fui contra a cultura automotiva e partidário de iniciativas que incrementem o transporte alternativo não poluente, desde que sejam acompanhadas de bom senso, seriedade, planejamento, capricho e beleza estética.

A propósito: gostaria de sugerir ao digníssimo alcaide que substituísse aquelas horrorosas faixas vermelho-PT por despolitizados e serenos gramados verdes. Por que não?  Além de embelezar e humanizar a cidade, essa medida apartidária aumentaria a área com cobertura vegetal e permitiria o escoamento das águas das chuvas que tantas enchentes provocam. Seria uma forma decente de expandir o alcance desse projeto cicloviário que, por enquanto, tem atendido a apenas algumas dúzias de paulistanos.

É verdade que tal medida dificultaria a locomoção das bikes e levantaria a fúria dos aguerridos cicloativistas que, embora se dizendo ecológicos, não abrem mão do asfalto. Acostumados a fazer alarde desproporcional contra toda medida que não atende a suas demandas, certamente iriam perfilar uma tropa de choque em frente ao MASP e bloquear a avenida Paulista, expediente reiteradamente utilizado pelas minorias barulhentas para impor sua vontade à maioria silenciosa. Porém o tráfego automotivo piorou tanto após a construção das ciclofaixas, que os conformados motoristas sequer iriam notar mais essa manifestação, resignados que estão a pagar o pato por suas execráveis máquinas poluentes.

A polêmica das ciclovias divide opiniões. De um lado, os “coxinhas” passaram a praticar exclusivamente pedaladas ergométricas no ambiente privativo das academias, longe do povaréu. De outro, os “petralhas” (mais chegados a outro tipo de pedalada) viram-se subitamente na obrigação ideológica de abdicar de seus hábitos sedentário-cerebrais para defender ardorosamente o uso das prosaicas bicicletas. Não se conformam com a mania dos paulistanos de insistir no costume reacionário de utilizar o metrô tucano.

Indiferente à controvérsia, ao invés de ficar proferindo inúteis brados de indignação contra as eleitoreiras medidas dos governantes de plantão, prefiro tirar proveito do que elas podem oferecer de bom. Abrindo mão de todos os veículos, conservadores ou progressistas, ando a pé pelas ciclovazias, feliz e despreocupado, sem ser importunado por carros, motos ou... bicicletas.

Quanto a essas magrelas pobres coitadas, indiferentes à polêmica que se criou em torno de seu uso e às complexas injunções sobre “mobilidade urbana das grandes metrópoles”, repousam inocentes nos apartamentos e garagens de onde só saem mesmo para passear com seus donos nos domingos ensolarados, quando desfilam felizes pela praia da Paulista.




Adaptado do texto RECICLOVIAS nesse mesmo blog
(julho de 2015)