Vira-lata de estirpe procura ser humano de raça. Pode ser
branco, negro, amarelo, vermelho, azul, não importa. A “raça” que realmente conta
para um autêntico vira-lata como eu é a fibra, o caráter e o afeto que me garantem
perfeita harmonia para os próximos 15 anos.
Confesso que sei muito pouco de meus ancestrais. Posso ter sido
gerado de um cruzamento de um pastor alemão com um rottweiler, de um labrador
com um boxer ou de um beagle com um yorkshire. Ou, mais provavelmente, de um
cachorro de raça indefinida com uma cadela de raça ignorada. Isso importa? Sim,
se você se preocupar mais com a árvore genealógica do que com a índole.
Esclareço que sou um vira-lata “raçudo”. Fiel, obediente,
amoroso, posso dar minha vida para proteger meu ‘dono’, ou melhor, meu
companheiro. Qualidades que você dificilmente vai achar num humano, seja de que
raça for.
Mas isso não me torna especial ou de elite. Sou apenas um
cão de rua, marginalizado pela sociedade assim como os mendigos, os poetas e os
que lutam por um mundo melhor para homens, plantas e animais. Há milhares como
eu, largados à própria sorte, expostos em feiras de adoção e oferecidos
gratuitamente a alguma alma caridosa que possa lhe oferecer um lar. Tão iguais na
condição aflitiva mas com cores, tamanhos e aspectos bem distintos para agradar
(ou desagradar) todos os gostos.
Ignorados pelos bacanas
que não vacilam em desembolsar 10 mil reais para ter um cachorro de raça pura
ou “pedigree”, seja lá o que isso signifique. Querem um bichinho de estimação para ostentar
suas virtudes congênitas a vizinhos e parentes. Exibi-lo orgulhosos como um
item valioso de seu patrimônio assim como seu carro importado ou sua bolsa de
grife. Escolhem suas companhias como um vinho num cardápio. Criam cachorros
como crianças mimadas, entulhando-os com roupas de frio, brinquedinhos caros, ração
importada, spas, entre outras frescuras. Oferendas que o tornam um cão obeso,
acomodado, egocêntrico, vaidoso. Quase como um humano padrão. Gente que não se
furta a prover toda espécie de paparicos a seu pet mas não tem “raça”
suficiente para abrir mão de uma migalha de suas regalias para prestar ajuda a um semelhante necessitado,
abandonado como um cão sem dono, matando cachorro a grito.
Pensam em combater a monotonia de sua vida enfadonha com a presença
de cachorros customizados. Ao sentirem-se em depressão e vítimas de outras
patologias da “raça humana” clamam a companhia terapêutica de um cão. Desde que
“de raça”.
Não entendo o comportamento desses humanos desumanos que se dizem
com “consciência social”, revoltam-se com o problema dos refugiados e das
crianças famintas. Ficam com olhos marejados e o coração apertado ao assistirem
injúrias cometidas por seres humanos contra seres humanos ou animais indefesos.
Indignam-se com o racismo. Mas na hora de escolherem um companheiro, exigem
certificação de procedência genética...
Gente assim eu dispenso, muito obrigado. Prefiro continuar livre
e solto, um vagabundo sem dama, perambulando pelas ruas das periferias e das
pequenas cidades, fugindo da carrocinha e da hipocrisia, junto com outros da
minha “raça”.
Animais não têm preconceitos nem cometem crueldades. Cães
‘de raiz’ como eu só querem viver e deixar viver, ser felizes e levar felicidade
àqueles que os acolheram.
Não tenho grandes exigências, sou de fácil convivência, inteligente,
aprendo regras com facilidade e ajudo a proteger a casa de inimigos e de
tristeza. Estou à procura de algum humano com bastante raça e com qualidades nobres
como as de um vira-lata para iniciarmos uma amizade duradoura e gratificante
para nós dois. Mas não estou à venda. É só me levar para casa.