Crianças sírias
são mortas diariamente nos hospitais de Goutha Oriental, vítimas de foguetes e
armas químicas utilizadas pelo ditador Bashar al-Assad, apadrinhado do
presidente russo Vladimir Putin, que pretende estender sua influência ao
Oriente Médio, recebendo ainda assistência logística de milicianos do grupo
paramilitar Hezbollah e do governo xiita do Irã, que conjuntamente combatem
organizações rebeldes de várias tendências, desde moderadas como o Exército Livre
Sírio, subsidiado por países do Ocidente, até as mais radicais como Frente Al
Nusra (atual Fatah Al-Sham), ligada a Al Qaeda, além de facções rebeldes
salafitas financiadas pela Arábia Saudita e de militantes vinculados à
Fraternidade Muçulmana que recebem apoio do emirado do Qatar e sobretudo da
Turquia, cujo governo conduzido por Erdogan, afastado recentemente dos Estados
Unidos (por ele acusados de estarem por trás da tentativa de golpe ocorrida em
julho de 2016), vem ensaiando uma maior aproximação com a Rússia (não obstante
o apoio desta a Assad), embora repudie a presença, na coalizão, de combatentes
curdos, aliados dos americanos (por terem integrado a coligação de
enfrentamento aos extremistas do Estado Islâmico) com receio de que venham a reivindicar
autonomia ao Curdistão, território que também abarca, além de terras sírias, parte
do Iraque, cujo governo, por outro lado, é igualmente sustentado pelos EUA
desde 2003, quando alijaram do poder o ditador Saddam Hussein, ocasionando o
esfacelamento da nação, um vácuo de autoridade e a eclosão de dezenas de
grupos sunitas e xiitas, assim como ocorreu na Líbia pós-Kadhafi, o que
propiciou a erupção de facções jihadistas radicais, pondo fim à ‘primavera
árabe’ que pode não ter chegado à Síria mas alcançou a Tunísia e o Egito cujo
presidente Mursi, eleito democraticamente após a queda de Hosni Mubarak, foi
destituído do poder em 2013 pelos militares os quais implantaram um regime
autocrático que mantém relações amistosas com Damasco, situação semelhante à do
Afeganistão, onde o governo, amparado militarmente pelos EUA, não consegue
exterminar a milícia talibã a qual intenciona implantar a ‘lei da sharia’
baseada nos preceitos do Alcorão e destruir todos os símbolos que não tenham
relação com o Maometismo, mesmo princípio adotado pelo ISIS que se perfila, aliás,
ao lado dos guerrilheiros anti-Assad na Síria, cujo governo pretensamente laico
mantém paradoxalmente relações cordiais com as minorias alauitas, cristãs e
drusas as quais temem a ascensão de um governo fundamentalista muçulmano
inspirado nos ideais reformistas que se espalharam pelo mundo árabe a partir de
2010, tendo desencadeado uma sangrenta repressão a seus opositores, num
conflito que vitimou mais de 500 mil pessoas.
Simples assim...
Enfim, quem é o
culpado por essa insanidade? Bashar al-Assad? Os russos? Os americanos? Os
grupos rebeldes de oposição? A Arábia Saudita? A Turquia? O Irã? O Hezbollah?
Os xiitas? Os sunitas? Os alauitas? Os drusos? Os cristãos? Os curdos? Os
israelenses? Os palestinos? O Estado Islâmico? A Al Qaeda? A Frente Al
Nusra? A ONU? O mosquito da dengue?
Cada uma das
partes se exime e acusa hipocritamente o inimigo. Mas a verdade é que ninguém parece
efetivamente disposto à iniciativa de estabelecer a paz, empenhado que está em
melhorar sua posição relativa no tabuleiro de xadrez em que se digladiam
poderosos interesses estratégicos e econômicos. Não há nem mesmo a preocupação
de prover um mínimo de salvaguardas para proteger civis inocentes que sequer
conhecem as razões do morticínio (se razões possa haver para tal).
Afinal, o que
representa o detalhe de uma mera criança morta ante a “grandiosidade” dos
ideais geopolíticos em jogo? Em que líderes iluminados, guiados por estratégias
mirabolantes, ideologias supremacistas, religiões transcendentes ou mera
ambição, dedicam-se a fabricar cadáveres.
Alheio às elevadas
injunções urdidas nos escalões superiores, o desesperado pai só quer saber uma
coisa: “Quem, por Allah, é o culpado pela morte do meu filho?”
Quando crianças
indefesas são assassinadas corriqueiramente, todos cruzam os braços e ninguém
faz nada é porque os fundamentos éticos que sustém a nossa civilização entraram
em colapso.
Todos somos
culpados. Não apenas pela omissão, mas também por termos sido incapazes de
tornar o mundo um lugar menos sórdido e inóspito onde a vida consiga vicejar.
Em que nossos filhos possam brincar felizes ao invés de serem alvejados por
mísseis e gás sarin. E por termos nos tornado tão assustadoramente indiferentes
ante a escalada de barbárie que assola o planeta.