domingo, 28 de fevereiro de 2021

MARCHA À RÉ

 


Marchinhas carnavalescas, outrora consideradas inocentes, têm sido objeto de polêmica, ao serem abolidas do repertório do desfile de alguns blocos, devido ao conteúdo de suas letras.

A marchinha de Carnaval faz parte da história da música brasileira e é mais velha do que o samba. Quando Donga registrou sua composição “Pelo Telefone”, oficialmente considerado o primeiro samba da história, a marchinha “Ô Abre Alas” (de 1899), de autoria da maestrina Chiquinha Gonzaga, já contava com 17 anos de idade.

O ritmo reinou absoluto no Carnaval durante o período de 1920 a 1960. Apenas a partir da década de 1960 foi destituído nos desfiles das escolas de samba pelo samba-enredo. Perdeu lamentavelmente espaço também nos blocos de rua para o axé e canções descartáveis que mal duram até a próxima estação.

Permanecem, todavia, as marchinhas, com suas letras insolentes, divertidas e de fácil memorização, na lembrança de todos. Traduzem o espírito brincalhão do nosso povo. "A marchinha é um gênero marcado pela crônica de época e pela malícia", diz o musicólogo Ricardo Cravo Albin.

Devido a suas características desaforadas, passaram a ser alvo de intolerância decorrente da onda do politicamente correto que tem assolado nossa cultura nos últimos tempos.

Rodrigo Faour, pesquisador da MPB, desaprova: “Sou contra o patrulhamento excessivo em cima das músicas de carnaval. Elas são um patrimônio brasileiro, não podemos botar uma carga tão pesada em cima delas. Existem palavras que não são aceitas hoje, mas, na época, eram faladas de maneira não pejorativas”. O antropólogo Roberto DaMatta acrescenta não ter sentido  os organizadores dos blocos alegarem que as músicas são discriminatórias porque não foram escritas com essa intenção: “A maneira de pensar era diferente”.

Algumas mais recentes trazem uma conotação sexual e de fato estão eivadas de certo preconceito como é o caso de “Cabeleira do Zezé”, “Maria Sapatão” e “A Pipa do Vovô”, divulgadas pelos capciosos apresentadores de auditório Chacrinha e Sílvio Santos.

Permanecesse nesse nicho, a polêmica não teria maiores repercussões para a cultura nacional. O problema é quando a perseguição atinge compositores tradicionais como Haroldo Lobo, Braguinha, Ary Barroso e Noel Rosa cujas músicas passaram a ter sua execução vetada, numa cruzada moralizadora não vista nem nos tempos do AI-5.

No caso do pretenso ‘racismo’, a atenção voltou-se às centenas de canções que usaram a palavra ‘mulata’ (presumidamente derivada de mula). Há controvérsias a respeito, havendo uma corrente que sustenta que deriva do árabe “mowallad” (filho de pai árabe com mãe de outra etnia).

Ainda que se aceite a suposta origem depreciativa, a questão é se vale a pena crucificar o termo, já incorporado ao vocabulário cotidiano uma vez que o uso corrente consagrou uma nova conotação sem nenhuma vinculação com a espúria raiz etimológica.

A esse respeito, assim se manifesta o cronista Ruy Castro: “Das dezenas de marchas que falam da ‘mulata’, muitas foram compostas por Assis Valente, Wilson Baptista, Haroldo Lobo, Zé e Zilda, Haroldo Barbosa, Monsueto etc. etc., e lançadas por cantores como Orlando Silva, Silvio Caldas, Aracy de Almeida, Carmen Costa, Cyro Monteiro, Moreira da Silva, Jorge Veiga, Ângela Maria etc. etc. Todos mulatos. E não viam nenhum problema nisso.”

Até mesmo o insuspeito Caetano Veloso não escapou de constar no Index Prohibitorum por referir-se em sua música “Tropicália” aos “olhos verdes da mulata”.

Uma das principais vítimas da cruzada anti-racista foi a consagrada “O Teu Cabelo Não Nega”, a mais famosa composição de Lamartine Babo, eleita pela Revista Veja a 3ª maior marchinha de todos os tempos.

Além da amaldiçoada palavra ‘mulata’, os atentos patrulheiros revisionistas se fixaram no verso “mas como a cor não pega” (em que ‘pega’ teria o sentido de transmitir a ‘maldição’ da cor negra). O jornalista Tárik de Souza, um dos maiores estudiosos da nossa música, rebate alegando que o ‘pega’ em questão mais possivelmente significaria ‘importa’, o que confere ao verso, ao contrário do que propalam seus críticos, uma acepção anti-racista. De fato, não parece razoável supor que Lamartine, com seu humor elegante, externasse temor de ser “contaminado” pela cor da mulata que tanto exaltava.

O humor atrevido não escapava da obra de Lamartine.  Que ia muito além. Estende-se a clássicos como “Serra da Boa Esperança”, “Sonhei que Tu Estavas Tão Linda” e a celebrada “No Rancho Fundo”. São de Babo também duas das mais populares marchinhas de festas juninas, “Chegou a Hora da Fogueira” e “Isso É Lá com Santo Antônio”, imortalizadas pela dupla Carmen Miranda & Mário Reis. Além disso, compôs hinos para os principais times de futebol carioca.

Mas Babo tornou-se mesmo famoso pelas suas conhecidas marchinhas que fizeram a alegria dos foliões, tornando-se por sua fértil produção um dos ícones da nossa música.

Um país tão pobre de referências culturais não pode se dar ao luxo de submeter ídolos consagrados a práticas inquisitoriais, sob o discutível pretexto de reparar eventuais injustiças históricas.

“A volta da censura, mesmo que por razões consideradas nobres, é algo assustador. O carnaval tem sempre um sentido anárquico e caricatural”, finaliza Tárik.

Longa vida à marchinha!

  

 

(Adaptado do meu texto RIDE PALHAÇO in OBRAS PRIMAS DE MPB NÃO DEVIDAMENTE RECONHECIDAS)

 


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

JÁ VAI TARDE

 

Xô, Trump. Xispa! Vaza! Tira sua indigna bunda rósea da cadeira na sala oval (um dia ocupada por Lincoln, Roosevelt e Kennedy), empesteando com sua inculta soberba o aposento solene no qual você apequenou perante o mundo o país que prometera engrandecer.

Peço desculpas se a rudeza do vocábulo do meu desabafo feriu a sensibilidade dos leitores. Eu mesmo, sujeito pacífico e ponderado, não me reconheço proferindo expressões tão chulas e agressivas, ainda que se prestem a qualificar tal ignominiosa criatura, alçada ao posto de dirigente do mais rico e poderoso país do planeta.

Ora, direis, qual a razão desse tempestuoso revanchismo que acomete esse irado cronista? Ao invés de desperdiçar o verbo praguejando impropriedades contra o referido indivíduo e sua horda de asseclas, não seria atitude mais positiva lançar loas para a era que se inicia? Afinal, Biden, ainda que nada faça de especial, muito fará se restabelecer os primados da civilidade e da dignidade, usurpados da Casa Branca nesses quatro deploráveis anos.

De fato, eu poderia rebuscar palavras mais gentis para poupar o leitor do aborrecimento desse insensato embate. Poderia ser mais condescendente com o derrotado (ainda que ele não o reconheça como tal). Uma manifestação de piedade, quem sabe, de compreensão, ante esse momento ingrato para ele.

Isso eu não farei! Vermes não merecem generosidade. Que minha indignação acumulada reverta seus efeitos sobre a fonte do mal. Meu coração petrificou-se, desumanizou-se, ‘trumpizou-se’, ‘bolsonarizou-se’.

Mas (ainda direis) por que tamanha revolta? O surgimento de governantes cruéis não é novidade desde que o mundo é mundo. Não precisamos evocar Calígula, Gêngis Khan, Robespierre, Hitler, Stálin, Idi Amin, Pol Pot, Pinochet, Putin... A humanidade foi pródiga em produzir dirigentes facínoras, à direita e à esquerda.

Não é preciso ir longe. Aqui mesmo em nosso paraíso tropical, temos um mandatário nefasto que se diverte enquanto dezenas de milhares de corpos de brasileiros mortos por COVID se amontoam em valas improvisadas e pacientes padecem pela falta de oxigênio e pela ausência de medidas protetivas que o próprio malévolo se incumbe de boicotar. Nenhuma novidade, afinal isso é Brasil.

A surpresa é quando esse descalabro sanitário assola o território próspero e pretensamente civilizado dos EUA, nação que há pouco servia de farol para o mundo. Um país que produziu obras primas nas artes e gênios nas ciências. Que, afora seu poderio bélico e econômico, difundiu os mais caros valores para a humanidade.

Com Trump, esses valores foram não só abandonados mas espezinhados. Escancarou ele o discurso do ódio, da segregação, do racismo, da agressão ao meio-ambiente, do boicote às iniciativas de paz, de redução da desigualdade, de combate à fome e à doença.

Com Trump, a hegemonia transformou-se em desprezo. America, first, resto, shit. Foi ele o artífice da supremacia do homem bra(o)nco  americano que odiava latinos, asiáticos, africanos.

Superioridade traduzida na empáfia que o fez recusar-se a reconhecer a derrota segundo a vontade popular manifestada no voto, a base da democracia. A mesma que, paradoxalmente o conduzira ao poder em 2016.

Coroou sua prepotência ao furtar-se a um derradeiro gesto de grandeza: apertar a mão do vencedor nas urnas, como reza a tradição (que ele hipocritamente alega defender).  

Que diferença para alguém íntegro como Obama! Homem de origem humilde que, mesmo nos momentos difíceis, nunca deixou de se comportar como um verdadeiro gentleman, sempre à procura do diálogo e do entendimento.

Deve ser humilhante para o trumpismo ter de reconhecer a superioridade moral da postura digna de um homem negro, descendente de muçulmanos frente à conduta prepotente de um bilionário arrogante branco, criado dentro dos preceitos da ‘moralidade’ cristã. Prova da falácia da supremacia da civilização exaltada por Trump e sua trupe de fanáticos.

Trump é o arauto do fim dos tempos, do apocalipse, quiçá um anticristo. A eleição de figuras abjetas como ele e seu discípulo Bolsonaro demonstra tristemente que a humanidade fracassou na tentativa de construir uma civilização de respeito para com o próximo e em harmonia com a natureza que pudesse assegurar a sobrevivência das futuras gerações.

Apesar do alento de sua derrota, tenho dúvidas de que seja possível sepultar esse projeto homicida que ainda ressoa forte na sociedade.

Se for possível retomar um caminho para construir um mundo melhor, a era Trump ficará marcada como uma triste mancha na história.  Não deixará saudades...

 Tchau, Trump, até nunca mais.