sexta-feira, 23 de julho de 2021

A AMAZON E A AMAZÔNIA

 

O lançamento de naves financiadas por bilionários com o intuito de promover o “turismo espacial” causou comoção a muita gente, embevecida com “os novos passos dados pela ciência”. “Ingressamos no limiar de uma nova era”, “rompemos um paradigma”, afirmam maravilhados.

Olhando tais reações, fico na dúvida se pertenço a outro planeta ou se são os outros que estão fora de órbita? Penso que se algum paradigma precisaria ser rompido é o de que é admissível destinar recursos colossais para aventuras cósmicas estéreis ao invés de se investir na sobrevivência do ameaçado planeta Terra. Ou o paradigma que considera aceitável alguns sujeitos acumularem fortunas tão estupidamente grandes que lhes permita sozinhos financiar viagens para além da estratosfera enquanto a imensa maioria não consegue sequer transpor os muros que confinam sua penúria.

Sou do time que considera escandaloso e imoral que se permita que sejam torrados bilhões de dólares para que alguns privilegiados tenham o direito de vaguear pelo espaço para constatar que a Terra, ao contrário do que imaginavam, é mesmo redonda (quem diria?)

Nem mesmo se sustenta o argumento de que o projeto possibilita ampliar os limites da ciência, uma vez que não se observa qualquer esboço em reverter o conhecimento científico do programa para iniciativas que promovam efetivamente o “bem da humanidade”. Apenas se presta a satisfazer a vaidade de ricaços que têm tanto dinheiro que os prazeres “mundanos” proporcionados pela nossa pobre Terra são insuficientes para dar vazão às suas exigências, anos-luz à frente das de outros mortais.

O “turismo espacial” não vai melhorar em nada a vida das hordas de deslumbrados com o progresso da ciência, a maioria dos quais pés rapados que babam com o espetáculo estelar que consagra o sucesso de ‘astros’ midiáticos diante da TV. Tampouco afetará o triste destino dos outros 7 bilhões de terráqueos que se apinham em condições sub-humanas, flagelados pela miséria, pela escassez de alimentos, pelas mudanças climáticas cada vez mais severas e pela ameaça da pandemia e de outras doenças.

Em compensação, vai proporcionar momentos fugazes de êxtase a meia dúzia de magnatas que, com a ausência de gravidade, adquirem o dom de levitar, libertos do peso que as responsabilidades financeiras arcam sobre o cotidiano de suas vidas insípidas.

Deixe os tours a museus e os safáris com animais selvagens para os pobretões da classe média. Substitua os tediosos spas e hotéis cinco estrelas por uma emocionante jornada às estrelas propriamente ditas. Troque os cruzeiros de luxo e os roteiros apinhados de rudes turistas chineses por estações espaciais com conforto vip.

Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo obviamente está na ponta da fila ou no pico da pirâmide dos que podem se deleitar com os prazeres inacessíveis a 99,99999% dos cidadãos. Na companhia de 3 outros podres de ricos (mais podres do que ricos), usufruiu dessa experiência exclusivíssima num voo de 10 minutos mediante a bagatela de 30 milhões de dólares per capita.

A empresa que controla, a Amazon, tem um valor de mercado superior ao PIB de um país com mais de 200 milhões de habitantes como o Brasil, sendo famosa por pagar uma ninharia de impostos (nada restituindo à sociedade de que extrai os recursos) e ainda impor condições sub-humanas a seus funcionários, expostos a uma pressão absurda pela máxima eficiência.

Bezos cinicamente agradeceu aos clientes e funcionários da Amazon por terem possibilitado a ele o “melhor dia de minha vida”. Seus empregados devem ter-se derramado em lágrimas em saber que o sangue e o suor que verteram não foi em vão, servindo para saciar o legítimo anseio desse indivíduo benevolente e necessitado que os explora até a alma pagando salários escorchantes. Que santo homem! Fico emocionado com seu desprendimento!

“Ah, mas a Amazon vende a preços em conta!” “Ah, mas a Amazon me entrega aqui no conforto do meu lar!”, diria o simplório consumidor que celebra o fato de adquirir os bens inúteis que reluzem chamativos na tela do seu celular, sem precisar levantar a bunda da poltrona. Alienado pelas maravilhas da tecnologia, não entrevê as nefastas consequências sócio-econômicas que ocorrem fora do raio delimitado por seu umbigo.

A Amazon é conhecida por empregar mão de obra barata e entregadores explorados até o limite da exaustão, em busca da impiedosa eficiência. A ascensão da empresa provocou o esfacelamento de milhares de pequenas livrarias e negócios familiares que tiveram seu ganha-pão destruído pelo avassalador poder monopolista desse mastodonte do varejo. Quantas pessoas foram jogadas no desemprego, quantos micro-empreendedores tiveram seu sonho de vida desfeito por um sistema atroz que privilegia pouquíssimos investidores condenando milhões de indivíduos a passar a existência na marginalidade.

Seu grande aliado é a Big Data e seus implacáveis algoritmos que se prestam a manipular os desejos de consumidores e controlar despoticamente o desempenho de seus funcionários. E a mesma tecnologia que permite a Bezos multiplicar seus lucros possibilitou-lhe agora divertir-se com seu brinquedinho aeroespacial.

O astronauta fanfarrão destinou a dinheirama que abunda em seus cofres (e carece aos estados falidos) para manipular a ciência para seus propósitos particulares. A tão decantada ciência, por sua vez, prostitui-se aos donos das verbas, as mesmas que minguam para projetos que poderiam servir aos desígnios de toda a humanidade. Segue ela os rumos ditados por alguns poucos endinheirados que determinam onde devem ser aplicados os recursos.

O senhor Bezos está se lixando para o futuro dos bilhões de indivíduos espalhados pelo planeta que ajudam a mover sua empresa. Pouco se importa também com os problemas climáticos ou com a destruição da Amazônia, a região que ironicamente o inspirou para nomear seu negócio e que está sendo devastada pelo capital predatório do qual o senhor Bezos é um legítimo representante.

O planeta que lhe forneceu os recursos para que pudesse amealhar sua pornográfica fortuna pouco lhe interessa. O senhor Bezos não tem qualquer projeto para melhorar a Terra. Seus olhos estão voltados para outros mundos, talvez imaginando que no futuro possa estender seus tentáculos para novas galáxias. Para o infinito... e além.

Boa viagem, senhor Bezos. Que a próxima seja só de ida.