O lançamento de naves financiadas por bilionários com o intuito de
promover o “turismo espacial” causou comoção a muita gente, embevecida com “os
novos passos dados pela ciência”. “Ingressamos no limiar de uma nova era”, “rompemos
um paradigma”, afirmam maravilhados.
Olhando tais reações, fico na dúvida se pertenço a outro planeta ou se
são os outros que estão fora de órbita? Penso que se algum paradigma precisaria
ser rompido é o de que é admissível destinar recursos colossais para aventuras
cósmicas estéreis ao invés de se investir na sobrevivência do ameaçado planeta
Terra. Ou o paradigma que considera aceitável alguns sujeitos acumularem
fortunas tão estupidamente grandes que lhes permita sozinhos financiar viagens para
além da estratosfera enquanto a imensa maioria não consegue sequer transpor os
muros que confinam sua penúria.
Sou do time que considera escandaloso e imoral que se permita que sejam torrados
bilhões de dólares para que alguns privilegiados tenham o direito de vaguear
pelo espaço para constatar que a Terra, ao contrário do que imaginavam, é mesmo
redonda (quem diria?)
Nem mesmo se sustenta o argumento de que o projeto possibilita ampliar os
limites da ciência, uma vez que não se observa qualquer esboço em reverter o
conhecimento científico do programa para iniciativas que promovam efetivamente
o “bem da humanidade”. Apenas se presta a satisfazer a vaidade de ricaços que
têm tanto dinheiro que os prazeres “mundanos” proporcionados pela nossa pobre
Terra são insuficientes para dar vazão às suas exigências, anos-luz à frente das
de outros mortais.
O “turismo espacial” não vai melhorar em nada a vida das hordas de deslumbrados
com o progresso da ciência, a maioria dos quais pés rapados que babam com o
espetáculo estelar que consagra o sucesso de ‘astros’ midiáticos diante da TV.
Tampouco afetará o triste destino dos outros 7 bilhões de terráqueos que se
apinham em condições sub-humanas, flagelados pela miséria, pela escassez de
alimentos, pelas mudanças climáticas cada vez mais severas e pela ameaça da
pandemia e de outras doenças.
Em compensação, vai proporcionar momentos fugazes de êxtase a meia dúzia
de magnatas que, com a ausência de gravidade, adquirem o dom de levitar, libertos
do peso que as responsabilidades financeiras arcam sobre o cotidiano de suas
vidas insípidas.
Deixe os tours a museus e os safáris com animais selvagens para os pobretões
da classe média. Substitua os tediosos spas e hotéis cinco estrelas por uma
emocionante jornada às estrelas propriamente ditas. Troque os cruzeiros de luxo
e os roteiros apinhados de rudes turistas chineses por estações espaciais com
conforto vip.
Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo obviamente está na ponta da fila
ou no pico da pirâmide dos que podem se deleitar com os prazeres inacessíveis a
99,99999% dos cidadãos. Na companhia de 3 outros podres de ricos (mais podres
do que ricos), usufruiu dessa experiência exclusivíssima num voo de 10 minutos mediante
a bagatela de 30 milhões de dólares per capita.
A empresa que controla, a Amazon, tem um valor de mercado superior ao PIB
de um país com mais de 200 milhões de habitantes como o Brasil, sendo famosa
por pagar uma ninharia de impostos (nada restituindo à sociedade de que extrai
os recursos) e ainda impor condições sub-humanas a seus funcionários, expostos
a uma pressão absurda pela máxima eficiência.
Bezos cinicamente agradeceu aos clientes e funcionários da Amazon por
terem possibilitado a ele o “melhor dia de minha vida”. Seus empregados devem
ter-se derramado em lágrimas em saber que o sangue e o suor que verteram não
foi em vão, servindo para saciar o legítimo anseio desse indivíduo benevolente
e necessitado que os explora até a alma pagando salários escorchantes. Que santo
homem! Fico emocionado com seu desprendimento!
“Ah, mas a Amazon vende a preços em conta!” “Ah, mas a Amazon me entrega
aqui no conforto do meu lar!”, diria o simplório consumidor que celebra o fato
de adquirir os bens inúteis que reluzem chamativos na tela do seu celular, sem
precisar levantar a bunda da poltrona. Alienado pelas maravilhas da tecnologia,
não entrevê as nefastas consequências sócio-econômicas que ocorrem fora do raio
delimitado por seu umbigo.
A Amazon é conhecida por empregar mão de obra barata e entregadores
explorados até o limite da exaustão, em busca da impiedosa eficiência. A ascensão
da empresa provocou o esfacelamento de milhares de pequenas livrarias e negócios
familiares que tiveram seu ganha-pão destruído pelo avassalador poder monopolista
desse mastodonte do varejo. Quantas pessoas foram jogadas no desemprego,
quantos micro-empreendedores tiveram seu sonho de vida desfeito por um sistema
atroz que privilegia pouquíssimos investidores condenando milhões de indivíduos
a passar a existência na marginalidade.
Seu grande aliado é a Big Data e seus implacáveis algoritmos que se
prestam a manipular os desejos de consumidores e controlar despoticamente o
desempenho de seus funcionários. E a mesma tecnologia que permite a Bezos
multiplicar seus lucros possibilitou-lhe agora divertir-se com seu brinquedinho
aeroespacial.
O astronauta fanfarrão destinou a dinheirama que abunda em seus cofres (e
carece aos estados falidos) para manipular a ciência para seus propósitos
particulares. A tão decantada ciência, por sua vez, prostitui-se aos donos das
verbas, as mesmas que minguam para projetos que poderiam servir aos desígnios de
toda a humanidade. Segue ela os rumos ditados por alguns poucos endinheirados
que determinam onde devem ser aplicados os recursos.
O senhor Bezos está se lixando para o futuro dos bilhões de indivíduos
espalhados pelo planeta que ajudam a mover sua empresa. Pouco se importa também
com os problemas climáticos ou com a destruição da Amazônia, a região que
ironicamente o inspirou para nomear seu negócio e que está sendo devastada pelo
capital predatório do qual o senhor Bezos é um legítimo representante.
O planeta que lhe forneceu os recursos para que pudesse amealhar sua pornográfica
fortuna pouco lhe interessa. O senhor Bezos não tem qualquer projeto para
melhorar a Terra. Seus olhos estão voltados para outros mundos, talvez
imaginando que no futuro possa estender seus tentáculos para novas galáxias. Para
o infinito... e além.
Boa viagem, senhor Bezos. Que a próxima seja só de ida.