Sexta-feira, 5 de novembro, fui surpreendido ao saber pelas manchetes dos principais jornais que havia falecido Marília Mendonça num desastre aéreo. Fiquei chocado e entristecido, afinal alguém tão jovem que tenha tido a vida interrompida por um trágico acidente, deixando uma filha de menos de 2 anos, é algo que abala qualquer indivíduo com um mínimo de sensibilidade no coração.
Apenas uma questão permaneceu pendente: quem era afinal Marília Mendonça? Por mais surreal que a questão possa parecer, confesso envergonhado: jamais tinha ouvido falar em Marília Mendonça.
Ao constatar que se tratava de uma cantora, revirei a memória (que anda meio falha) em busca de alguma referência. A única Mendonça cantora que me ocorreu foi a intérprete de boleros Martha Mendonça que fazia, nos anos 60, par com o seresteiro Altemar Dutra e hoje deve estar com idade avançada. Nada a ver com a vitimada que contava, ao que consta, com 26 anos, nenhum dos quais marcara presença em meu limitado mundo de escritor e (acredite!) pesquisador musical.
Nessa última atividade, dedico-me a rever discos relevantes e pesquisar artistas da nova geração que possam concorrer em talento com meus ídolos dos anos 70. Música sertaneja passa longe de minhas preferências e referências.
Não falo obviamente do sertanejo raiz de Inezita Barroso, Cascatinha & Inhana e da viola caipira dos mestres Tião Carreiro e Renato Andrade. Refiro-me à praga do chamado ‘sertanejo universitário’ com suas melodias boçais, seu irritante vocal estridente, suas letras deploráveis desprovidas de senso crítico ou poético e aquele visual cafona de mauricinho engomado com chapéu de cowboy texano, a representação musical do inculto agronegócio.
Apesar das restrições, deveria eu, quando menos por dever de ofício, ter noção de quem era a moça. Todo mundo ao redor não apenas conhecia mas venerava Marília Mendonça. Tive uma estranha sensação de ser um estrangeiro em meu próprio país.
Lembrei-me daquele filme “Yesterday” no qual após um apagão mundial, a existência dos Beatles fora removida da memória de todos, exceto do personagem central. Senti-me numa situação inversa. Era como se um raio tivesse caído sobre mim e danificado meus arquivos internos. Enquanto os demais mortais continuavam a tocar normalmente suas existências, eu passara a habitar uma realidade paralela onde as canções da musa sertaneja jamais haviam existido. Continuei guardando perfeitamente na lembrança “Help”, “Hey Jude” e “Let it Be”. Todavia, “Ciumeira”, “Graveto” e “Infiel” foram deletadas do meu CPU interno. Nenhum registro foi localizado.
É verdade que ultimamente tenho sido mais seletivo com as informações que repasso a minha massa cinzenta. Limito-me a assistir filmes e telejornais na TV por assinatura e só escuto a rádio USP. Marília Mendonça deve ter tido acesso barrado a meu sobrecarregado hipocampo. Isso talvez explique (sem justificar) meu alheamento.
Pela repercussão do triste episódio, avalio que a moça deva ter representado um papel crucial na vida dos brasileiros. Fiquei estupefato em saber que era uma campeã de popularidade e suas composições atingiam centenas de milhões de acessos nos youtubes da vida.
Pesquisei a trajetória artística da goiana. Começou compondo para as duplas João Neto & Frederico e Mateus & Kauan. Iniciou carreira solo com um single com Henrique & Juliano e fez sucesso ao lado de Maiara & Maraisa. Muitíssimo esclarecedor! Vi que não apenas não conhecia Marília Mendonça como desconhecia todo o entorno de Marília Mendonça.
Notei, no entanto, que mesmo quem não apreciava suas músicas respeitava-a por seu caráter e sua postura de defesa dos direitos da mulher promovendo sua autoestima numa sociedade controlada por machões reacionários que as manipulam como objeto. Escutei diversos repórteres enrolando a língua ao tentar explicar a importância da “rainha da sofrência” sem saber a letra de nenhuma de suas músicas. Letras que, vim a descobrir, denotavam um notável diferencial nesse universo sertanejo que exalta a bebedeira e as mulheres submissas. Não é pouca coisa.
Nenhum dos principais políticos, seja de direita, centro ou esquerda, deixou de manifestar seu pesar pela perda da artista, menos por suas posições afirmativas do que por sua popularidade. Até o presidente pegou carona na comoção nacional. O mesmo que, durante sua gestão, ignorou a morte de músicos como Aldir Blanc, Beth Carvalho, Bibi Ferreira, Cassiano, João Gilberto, Moraes Moreira e Nelson Freire sem contar os 600 mil levados pela COVID. Afinal, não podia correr o risco de sofrer baixas no eleitorado sertanejo que lhe é tão fiel.
Enfim, ninguém ficou imune à passagem terrena de Marília Mendonça. Exceto o alienado que lhes escreve. Ao confessar minha vil ignorância, fui apedrejado por muitos que se sentiram indignados e ofendidos. Como pode alguém ser tão burro a ponto de desconhecer Marília Mendonça? Ultraje! A esses, só me resta pedir desculpas se os agredi com minha involuntária desconsideração. Talvez meu arrependimento e minha confissão de mea culpa remendem parcialmente minha culpabilidade.
Para redimir de vez minha omissão, comprometo-me a desvendar os dotes artísticos da deusa sertaneja, e a louvar suas indiscutíveis qualidades, elogiadas até por quem não é da área como Caetano Veloso e Gal Costa. Até lá, peço um pouco de compreensão. Prometo esforçar-me na missão de regeneração da figura da artista e obrigo-me como penitência a escutar integralmente um show de Marília Mendonça.
Só não me peçam, por favor, para tornar-me fã de Bruno e Marrone.