“Sou a favor da pena de vida, se o sujeito cagou, pisou na bola, tem que resolver aqui, não pode sair fora” (PENA DE VIDA, Pedro Luís e a Parede)
É assustadora a frequência com que
ocorrem nos EUA massacres perpetrados por armas de fogo, com inúmeros mortos e feridos,
em especial em escolas, que deveriam ser ambientes seguros de sociabilidade e aprendizado.
Famílias são destroçadas, crianças
com toda uma vida pela frente são executadas friamente por razões fúteis.
As motivações para tais atos bárbaros
podem ser de várias naturezas: racismo, ódio, terrorismo, paranoia... Mas há um
fator que perpassa todos esses trágicos eventos: a facilidade com que os
americanos têm acesso a armas de fogo.
É uma chaga americana que explica por
que o país mais rico do planeta, o único onde o número de armas supera o de
habitantes, é também o mais violento e um dos que têm os maiores índices de
criminalidade, campeão nas taxas de homicídios, suicídios e acidentes fatais
provocados por esses artefatos bélicos.
E o que mais impressiona é que nada
parece indicar que isso vá mudar tão cedo. A indignação que surge logo após a consumação
de um desses atos de selvageria não é suficiente para provocar uma mudança e,
passada a comoção, o assunto cai no esquecimento.
Por trás dessa situação desalentadora
está o lobby exercido pelos poderosos fabricantes de armas sobre os
parlamentares do Partido Republicano. Trump durante a sua gestão aparelhou o
Poder Judiciário a seu molde, titulando um enorme contingente de juízes,
incluindo membros da Suprema Corte, que sistematicamente rejeitam toda
iniciativa no sentido de endurecer o acesso dos cidadãos às armas.
A solução que essa turma da bala
propõe para as carnificinas é armar os professores e os funcionários das escolas.
Poderiam também, quem sabe, permitir que as crianças andassem com pistolas nas
mochilas para aumentar sua proteção. Ou seja, o problema causado pela liberação
das armas seria resolvido armando mais gente. Cômico se não fosse trágico.
Mas há também um componente ancestral
que dificulta a modificação dessa fixação doentia, enraizada na cultura ianque,
herdada dos tempos do faroeste, que faz com que ser contra armas represente
perda de votos.
Um exemplo pode ser verificado nos
filmes policiais ou de ação norte-americanos que inundam nossos cinemas e lares.
Havendo um vilão malvado, o enredo quase sempre se livra desse personagem incômodo
fazendo com que tome um tiro letal que o tire definitivamente de cena. São
raros os casos onde a sorte do malfeitor é determinada por um julgamento onde
fique comprovada sua culpa e seja definido seu encarceramento. Seu destino não
é resolvido nos tribunais mas por uma pistola justiceira. A mensagem é que,
como a justiça não funciona, a solução é que lhe seja metido um balaço na
cabeça ou no coração. A ‘sentença’ de pena de morte é definida e aplicada pelos
‘mocinhos’, à revelia dos trâmites processuais.
Através da eliminação física do malfeitor,
supõe-se que suas culpas foram expiadas. O espectador pode dormir o sono dos
justiçados pois o meliante não voltará a ameaçar a pobre vítima nem abalar sua
certeza de que a justiça foi aplicada e o delinquente teve o fim que merecia. Morto,
não corre o risco de escapar das grades e voltar às ruas para vingar-se, aproveitando-se
de alguma brecha jurídica.
É como se os cidadãos da
autoproclamada maior democracia do mundo confiassem menos em suas próprias leis
do que no poder mortífero de um atirador, detentor do direito divino de fazer
justiça com as próprias mãos.
Resta a pergunta: com a morte os
crimes foram de fato redimidos? Minha opinião é um enfático NÃO! Uma vez que um
preciso projétil arrancou-lhe a vida numa fração de segundo, sem que ele vivenciasse
qualquer sofrimento, ele não teve oportunidade de ponderar sobre suas ações maléficas
ou arrepender-se, pagando efetivamente por seus pecados através da perda da
liberdade e da triste sina de ter parte de sua vida enclausurado no inferno de um
cárcere. A verdadeira justiça só seria aplicada se o criminoso, ao invés de ter
sua carcaça inerte levada a um cemitério, fosse conduzido em vida para a
cadeia, amargando anos de tormenta por seus crimes atrás das grades de uma soturna
cela, tendo oportunidade de avaliar se seus atos insanos valeram a pena.
Àqueles que argumentam que a
penitenciária não regenera ninguém, que pensem no aprimoramento do código penal
de maneira que a prisão cumpra seu requisito não apenas de recuperar o
criminoso para a sociedade como fazê-lo efetivamente pagar pelo crime. Não na
outra vida, mas aqui mesmo. É isso que a sociedade espera do sistema jurídico.
Não é essa a lição que Hollywood passa.
Perpetua a visão de que é somente através das armas que resolveremos o problema
da injustiça e da criminalidade. Com isso fortalece um sentimento de incredulidade
nas instituições em promover a segurança do cidadão.
O direito ‘sagrado’ de ter uma arma é
considerado tão básico que consta expressamente da Constituição americana, associado
a um sentimento de liberdade, proteção do patrimônio e segurança individual
contra a ação dos fora-da-lei.
Argumentos parecidos são evocados ou
talvez macaqueados pelo presidente Bolsonaro, venerador de Trump e das armas,
tema que, ao contrário do que ocorre em nosso irmão do Norte, parece não
seduzir nosso povo que, apesar dos pesares, ainda mantém uma índole pacífica e
cordial e é majoritariamente contra a política de flexibilização das armas teimosamente
preconizada por nosso mandatário de plantão.
Num país onde questões mais graves como
a fome, a miséria e a desigualdade social imperam, importar o bangue-bangue da
cultura americana é uma boa maneira de lançar uma cortina de fumaça sobre as
verdadeiras mazelas do nosso país.
Ao invés de investir num futuro melhor
e mais humano preparando nossos jovens para a solidariedade e para a paz,
estamos, com essa obtusa política armamentista, cultivando a morte e a
violência, transformando ruas e parques, não em espaços comunitários de
convivência, mas em arenas de combate, onde o outro é visto como ameaça em
potencial.