terça-feira, 10 de maio de 2022

FAIR PLAY

You win some, lose some, it's all the same to me, the pleasure is to play (“Você ganha algumas, perde algumas, dá no mesmo para mim, a graça é jogar”) - Motorhead, Ace of Spades

 

“FAIR PLAY” é uma expressão inglesa originária do mundo esportivo que pode ser traduzida como “jogo limpo”, que traz a essência que inspirou o surgimento dos Jogos Olímpicos. Está associada à ideia de “espírito esportivo”, de “saber perder” e de que numa disputa o que vale é a luta e o empenho do competidor, independente do resultado final. Acima de qualquer coisa está o respeito às regras e a um código de conduta balizado pela ética.

Violam esse primado os contendores que se dopam e usam artifícios ilícitos, fazem “jogo sujo”, aplicam “golpes baixos”, dão soco abaixo da cintura, fazem gol com a mão e recorrem a outros expedientes para ludibriar a arbitragem.

Na outra ponta, são modelos de fair play aqueles que abdicam de vantagens espúrias e abrem mão da utilização de métodos que, embora não previstos nos regulamentos, constituem ações moralmente condenáveis. Optam por um caminho eticamente elevado, o que muito diz a respeito de seu caráter.

Como exemplo de atitudes louváveis, poderíamos citar a prática consagrada no futebol de se lançar a bola para fora do campo, interrompendo a partida, ao se perceber a contusão de um jogador do time adversário, nobre procedimento que o time beneficiário retribui. Ainda que não estejam explicitados em nenhum manual, tais procedimentos cavalheirescos dignificam os competidores. O prazer pessoal de agir com gentileza e cortesia confere a sensação engrandecedora de se estar bem consigo mesmo, de ter feito a coisa certa, de conectar-se com os princípios divinos, sentimento que supera a fútil vantagem de lucrar aproveitando-se egoisticamente de uma circunstância favorável.

No dia a dia, esse comportamento revela-se em atitudes cordiais como dar a vez ao idoso ou ao pedestre que atravessa a rua, recolher o papel jogado por alguém negligente, fazer doações a necessitados ou simplesmente ser amável com o próximo. Esses pequenos gestos de cidadania tornam o cotidiano mais saudável, a relação entre as pessoas mais gratificante e o mundo um lugar mais agradável de se viver.

Na esfera política, o fair play aplica-se ao regime democrático onde a disputa pelo poder subordina-se a regras a que os competidores comprometem-se civilizadamente a obedecer. Não nos referimos apenas às normas de licitude, observadas pela Justiça, mas também às normas de decoro e retidão que impedem que os candidatos, por exemplo, se valham de fake news para enganar os eleitores.

Respeitando tal princípio, os regimes abertos e livres, cujas normas impessoais são concebidas para fazer prevalecer a vontade autêntica da maioria, gabam-se de sua superioridade moral sobre os ditatoriais onde as determinações são impostas casuisticamente para beneficiar um déspota ou um pequeno grupo de indivíduos que visa se eternizar no poder.

Infelizmente, em várias nações ditas democráticas, constatamos uma degeneração desses sublimes preceitos. Nos EUA, justamente o país que abriga uma das autoproclamadas democracias mais respeitadas do planeta, o fair play deu uma degringolada.

Nas últimas eleições americanas houve um rompimento desse contrato implícito. O candidato Donald Trump recusou-se a aceitar o resultado eleitoral adverso, reconhecido por todas as instâncias institucionais certificadas para fazer cumprir com isenção o que determina a lei. O comportamento do ex-presidente demonstrou uma lastimável falta de “espírito esportivo”, arranhando indelevelmente o que por décadas prevaleceu como um dos pilares da credibilidade do sistema.

Recusou-se ademais a cumprimentar o legítimo vencedor, ato tradicional da cultura americana adotado quase que como um ritual, como forma de celebrar a legitimidade do resultado. O gesto simbólico de estender a mão ao adversário funciona como um aval para a sagração do processo de escolha, acima das rasteirices da disputa.

Não satisfeito com o estrago, Trump insuflou seus seguidores a invadir o Capitólio e destruir símbolos seculares do país. Os EUA que se gabavam de ostentar o modelo de democracia, apequenaram-se perante o mundo e os próprios cidadãos americanos, outrora orgulhosos de suas instituições.

No Brasil, onde, desde a redemocratização, a liturgia da troca de mandatários vem sendo acatada por políticos das mais diversas inclinações ideológicas, corremos o risco de ver repetida essa quebra ao fair play democrático.

O Trump tropical que nos governa invoca fantasmas como o ‘descrédito’ das urnas e a ‘imparcialidade’ da Justiça para deslegitimar o processo eleitoral que ameaça sua recondução ao cargo. O que transparece aqui é a lógica do menino birrento: caso eu não vença a partida, o resultado não vale e não tem mais jogo.

O presidente sugere a participação de seus amigos militares para inspecionar as eleições. Seria como se em uma partida de futebol do Brasileirão, o dirigente de um dos times recusasse o árbitro indicado pela CBF e exigisse que o escolhido seja seu segurança particular. Ora, segundo a Constituição cabe à Justiça Eleitoral e não às Forças Armadas o papel de assegurar a lisura das eleições. São as regras e quem quiser participar deve obedecê-las.

A ruptura do fair play nas democracias vem sendo acompanhada pela ascensão da cultura do ódio, própria do extremismo. As redes sociais têm fortalecido esse processo ao fomentar manifestações de intolerância. As pessoas são insufladas a assumir uma postura agressiva em relação a quem pensa diferente.

A violação do fair play replicou no campo esportivo, voltando-se contra o espírito que o originou. Os comportamentos dos atletas profissionais desvirtuaram-se em função do excessivo apego ao dinheiro e à fama. O ‘amor à camisa’, tão vinculado ao esporte amador, está em vias de extinção.

Essa tendência revela-se também no comportamento virulento das torcidas organizadas. Ante a escalada de selvageria, as diferenças não são resolvidas no gramado segundo as regras, mas com base da violência de barras de ferro, rojões e até armas de fogo usadas contra os simpatizantes do time adversário.

Além da esfera esportiva e política, a ruptura do fair play se manifesta no racismo, na homofobia, no ódio contra imigrantes e minorias e no campo religioso onde cada vez mais prevalece a intolerância aos que seguem outros cultos, como religiões de matrizes africanas.

É triste e preocupante assistir a derrocada do fair play nesses tempos sombrios. É um degrau abaixo em direção à barbárie para a qual parece caminhar nossa civilização.

 

 

 

 

 


Um comentário:

Anônimo disse...

Realmente é triste constatar como o mundo está, cada vez mais, cheio de ódio, preconceitos, injustiças e violência, tornando nossa vida .mais difícil é dolorosa...