sexta-feira, 12 de maio de 2023

OVELHA NEGRA

 

“Essas pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer” (Panis et Circensis, Os Mutantes)

 Não é possível aquilatar a extensão do prejuízo cultural causado pela morte de Rita Lee. Muito além da saída de cena de uma artista peculiar, talentosa e arrojada, sua morte representa o fim de uma era em que a música brasileira atingiu um grau de excelência nunca mais igualado, por obra e graça dos inconformados e dos insanos (“dizem que sou louco por pensar assim”).

A cantora, compositora e instrumentista paulistana, muito mais do que a rainha do rock brasileiro, representava o que o ritmo tinha de mais vigoroso: a inovação e a não sujeição ao establishment. E sua vida pessoal encarnava essa atitude transgressora.

Ao lado de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias formou Os Mutantes, o mais importante conjunto de rock brasileiro de todos os tempos. A participação do grupo no álbum Panis et Circensis, interpretando a canção homônima de autoria de Caetano e Gil, marcou um dos pontos cruciais do nascimento do tropicalismo.

As novas gerações que não vivenciaram o ambiente em que estava mergulhada a cultura nacional à época certamente não poderão compreender a importância da quebra de paradigma que representou o surgimento do daquele movimento no meio musical.

Nos idos da segunda metade dos anos 60, sob ditadura militar, as manifestações artísticas eram severamente reprimidas. Os famosos festivais de MPB eram o canal perfeito através do qual os artistas, com canções de protesto, encampadas por nomes como Geraldo Vandré (“Pra não Dizer que não Falei das Flores”), Chico Buarque (“Roda Viva”) e MPB-4 (“Pesadelo”), externavam sua insatisfação ante a situação vigente, muitas vezes com versos camuflados para fugir da censura.

A Tropicália por sua vez procurava minar os alicerces do sistema pelas bordas, não através de letras que confrontavam diretamente o regime, mas por meio de uma estética revolucionária e expressões dúbias e obscuras que deixavam os militares desorientados.

À época, a juventude dividia-se entre os que reverenciaram as canções tradicionais de protesto (sobretudo provindos do meio universitário) e aqueles que se deixaram cativar pela linguagem simplória e domingueira da Jovem Guarda de Roberto e Erasmo, influenciada pelo rock’n’roll importado dos EUA e da Inglaterra e com o uso da onipresente guitarra elétrica. Esse movimento, embora encarado como alienante por parte do primeiro grupo, não deixava de ter uma veia insubmissa ao retratar um modo atrevido de se vestir e de se comportar, visto com maus olhos pelos detentores do poder.

O lançamento em 1967 do álbum Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band dos Beatles significou um rompimento radical do formato do rock, até então caracterizado por suas letrinhas juvenis bobinhas e açucaradas, passando a postular aspirações ousadas com a incorporação de elementos sonoros mais ambiciosos, instrumentação e arranjo sofisticados e pouco convencionais, agregação de sons orientais e desenvolvimento de longas peças musicais trabalhadas e recheadas de nuances. Visto até então com um estilo inconsequente, o rock credenciou-se a assumir o papel de porta-voz dos anseios de uma juventude rebelde e libertária que queria transformar o mundo e contestar o modo de vida burguês e conservador.

Deixou o rock de ser apenas um mero gênero musical e passou a ter atitude incorporando pautas como maior liberdade sexual, pacifismo (posicionando-se contra a guerra do Vietnam), a adoção do estilo de vida hippie (“paz e amor”), o visual escrachado com cabelos compridos desalinhados, o uso de drogas alucinógenas para transcender os limites do corpo e da mente etc.

O tropicalismo foi a versão tupiniquim dessa tendência, juntando a estética roqueira a elementos da cultura genuinamente nacional, revivendo os preceitos da antropofagia de Oswald de Andrade. Os Mutantes estavam na linha de frente desse movimento, ao lado de Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, Torquato Neto e Rogério Duprat.

Com o declínio da Tropicália, Rita Lee saiu (ou “foi saída”) d’Os Mutantes (após cinco álbuns impactantes, até hoje disputadíssimos) por divergências sobre os novos rumos musicais propostos de voltar-se para o rock progressivo, inspirados em bandas britânicas como o Yes que viviam seu apogeu.

Livre das amarras impostas pelos irmãos Arnaldo e Sérgio, Rita assumiu sozinha o lado mais escrachado e impertinente do rock, mantendo-se fiel ao espírito descompromissado que originou Os Mutantes, inicialmente com sua nova banda, Tutti Frutti, e depois em parceria com Roberto de Carvalho, seu companheiro até o final da vida. O álbum Fruto Proibido que continha Ovelha Negra (com memorável solo guitarra de Luís Carlini) foi o auge dessa nova etapa, um disco irretocável, inegavelmente o melhor de sua carreira solo, onde o rock reinava soberano.

Mais madura, Rita passou a flertar com temáticas românticas e deixou o rock em segundo plano, o que se por um lado tornou-a mais convencional, por outro arrebanhou uma nova e mais ampla legião de fãs, fazendo-a uma das campeãs de vendas de discos no país (55 milhões segundo a wikipedia).

Afora essa virada comercial e sua adesão ao mainstream musical, Rita será eternamente lembrada pela imagem de ‘Ovelha Negra’ dos primórdios, aquela que não segue os modelos de bom comportamento nem se submete aos padrões sociais estabelecidos.

Sua morte representa o derradeiro suspiro da criatividade e da irreverência que ajudaram a moldar uma nova MPB em seus tempos grandiosos (até meados dos anos 70). De lá para cá, houve uma visível mediocrização na qualidade da música brasileira até desaguarmos no melancólico panorama atual. Os jovens abandonaram a rebeldia e o visual despojado e renderam-se a um estilo comportado e conformista com trajes engomadinhos e penteados de mauricinhos.

Por outro lado, a MPB acomodou-se tornando-se um gênero musical adulto e burocrático que vive do passado glorioso, com espetáculos voltados para uma audiência elitizada e incapaz de dialogar com públicos maiores.

O rock não teve melhor sorte. A criatividade e a improvisação que marcou a criação de álbuns memoráveis dos anos 60 e 70 foi aos poucos definhando. O carisma passou a ser aferido pelo volume em decibéis produzido por grupos de heavy metal que produzem muito barulho e nenhum gesto de ousadia. Tornou-se um ritmo estagnado, machista curtido por cervejeiros cultuadores de motos. Os antigos ideais de transformação social foram aposentados.

A morte de Rita Lee foi o último suspiro dessa cultura inconformista, transgressora e irreverente da tropicália e do rock em seus tempos áureos.