“Essas pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer” (Panis et Circensis, Os Mutantes)
A cantora, compositora e
instrumentista paulistana, muito mais do que a rainha do rock brasileiro,
representava o que o ritmo tinha de mais vigoroso: a inovação e a não sujeição
ao establishment. E sua vida pessoal encarnava essa atitude transgressora.
Ao lado de Arnaldo Baptista e Sérgio
Dias formou Os Mutantes, o mais importante conjunto de rock brasileiro de todos
os tempos. A participação do grupo no álbum Panis et Circensis, interpretando a
canção homônima de autoria de Caetano e Gil, marcou um dos pontos cruciais do nascimento
do tropicalismo.
As novas gerações que não vivenciaram
o ambiente em que estava mergulhada a cultura nacional à época certamente não poderão
compreender a importância da quebra de paradigma que representou o surgimento
do daquele movimento no meio musical.
Nos idos da segunda metade dos anos
60, sob ditadura militar, as manifestações artísticas eram severamente
reprimidas. Os famosos festivais de MPB eram o canal perfeito através do qual
os artistas, com canções de protesto, encampadas por nomes como Geraldo Vandré
(“Pra não Dizer que não Falei das Flores”), Chico Buarque (“Roda Viva”) e MPB-4
(“Pesadelo”), externavam sua insatisfação ante a situação vigente, muitas vezes
com versos camuflados para fugir da censura.
A Tropicália por sua vez procurava minar
os alicerces do sistema pelas bordas, não através de letras que confrontavam
diretamente o regime, mas por meio de uma estética revolucionária e expressões
dúbias e obscuras que deixavam os militares desorientados.
À época, a juventude dividia-se entre
os que reverenciaram as canções tradicionais de protesto (sobretudo provindos
do meio universitário) e aqueles que se deixaram cativar pela linguagem
simplória e domingueira da Jovem Guarda de Roberto e Erasmo, influenciada pelo
rock’n’roll importado dos EUA e da Inglaterra e com o uso da onipresente
guitarra elétrica. Esse movimento, embora encarado como alienante por parte do
primeiro grupo, não deixava de ter uma veia insubmissa ao retratar um modo
atrevido de se vestir e de se comportar, visto com maus olhos pelos detentores
do poder.
O lançamento em 1967 do álbum Sgt
Peppers Lonely Hearts Club Band dos Beatles significou um rompimento radical do
formato do rock, até então caracterizado por suas letrinhas juvenis bobinhas e
açucaradas, passando a postular aspirações ousadas com
a incorporação de elementos sonoros mais ambiciosos, instrumentação e arranjo sofisticados
e pouco convencionais, agregação de sons orientais e desenvolvimento de longas
peças musicais trabalhadas e recheadas de nuances. Visto até então com um estilo
inconsequente, o rock credenciou-se a assumir o papel de porta-voz dos anseios
de uma juventude rebelde e libertária que queria transformar o mundo e contestar
o modo de vida burguês e conservador.
Deixou o rock de ser apenas um mero gênero
musical e passou a ter atitude incorporando pautas como maior liberdade sexual,
pacifismo (posicionando-se contra a guerra do Vietnam), a adoção do estilo de
vida hippie (“paz e amor”), o visual escrachado com cabelos compridos
desalinhados, o uso de drogas alucinógenas para transcender os limites do corpo
e da mente etc.
O tropicalismo foi a versão
tupiniquim dessa tendência, juntando a estética roqueira a elementos da cultura
genuinamente nacional, revivendo os preceitos da antropofagia de Oswald de
Andrade. Os Mutantes estavam na linha de frente desse movimento, ao lado de Caetano,
Gil, Gal, Tom Zé, Torquato Neto e Rogério Duprat.
Com o declínio da Tropicália, Rita
Lee saiu (ou “foi saída”) d’Os Mutantes (após cinco álbuns impactantes, até hoje
disputadíssimos) por divergências sobre os novos rumos musicais propostos de voltar-se
para o rock progressivo, inspirados em bandas britânicas como o Yes que viviam
seu apogeu.
Livre das amarras impostas pelos
irmãos Arnaldo e Sérgio, Rita assumiu sozinha o lado mais escrachado e
impertinente do rock, mantendo-se fiel ao espírito descompromissado que originou
Os Mutantes, inicialmente com sua nova banda, Tutti Frutti, e depois em
parceria com Roberto de Carvalho, seu companheiro até o final da vida. O álbum Fruto
Proibido que continha Ovelha Negra (com memorável solo guitarra de Luís
Carlini) foi o auge dessa nova etapa, um disco irretocável, inegavelmente o
melhor de sua carreira solo, onde o rock reinava soberano.
Mais madura, Rita passou a flertar
com temáticas românticas e deixou o rock em segundo plano, o que se por um lado
tornou-a mais convencional, por outro arrebanhou uma nova e mais ampla legião
de fãs, fazendo-a uma das campeãs de vendas de discos no país (55 milhões
segundo a wikipedia).
Afora essa virada comercial e sua adesão
ao mainstream musical, Rita será eternamente lembrada pela imagem de ‘Ovelha
Negra’ dos primórdios, aquela que não segue os modelos de bom comportamento nem
se submete aos padrões sociais estabelecidos.
Sua morte representa o derradeiro
suspiro da criatividade e da irreverência que ajudaram a moldar uma nova MPB em
seus tempos grandiosos (até meados dos anos 70). De lá para cá, houve uma visível
mediocrização na qualidade da música brasileira até desaguarmos no melancólico
panorama atual. Os jovens abandonaram a rebeldia e o visual despojado e renderam-se
a um estilo comportado e conformista com trajes engomadinhos e penteados de
mauricinhos.
Por outro lado, a MPB acomodou-se
tornando-se um gênero musical adulto e burocrático que vive do passado
glorioso, com espetáculos voltados para uma audiência elitizada e incapaz de dialogar
com públicos maiores.
O rock não teve melhor sorte. A
criatividade e a improvisação que marcou a criação de álbuns memoráveis dos
anos 60 e 70 foi aos poucos definhando. O carisma passou a ser aferido pelo
volume em decibéis produzido por grupos de heavy metal que produzem muito
barulho e nenhum gesto de ousadia. Tornou-se um ritmo estagnado, machista
curtido por cervejeiros cultuadores de motos. Os antigos ideais de
transformação social foram aposentados.
A morte de Rita Lee foi o último
suspiro dessa cultura inconformista, transgressora e irreverente da tropicália
e do rock em seus tempos áureos.