Qual elo poderia unir duas figuras
tão distintas quanto o teatrólogo Zé Celso e o apresentador Sílvio Santos?
Agitador cultural, artista
libertário, inovador, ousado, Zé Celso Martinez Corrêa dedicou sua vida às
artes cênicas e a difundir cultura para esse país tão carente, um sujeito
transgressor e revolucionário que jamais se submeteu aos padrões estabelecidos,
tendo batido de frente com a ditadura. Faleceu bestamente num incêndio em seu
apartamento, aos 86 anos
Sílvio Santos, ou melhor, Senor Abravanel,
um dos homens mais ricos do Brasil, dono de uma portentosa rede de comunicação,
o SBT, com programação voltada para as classes mais humildes, é um homem
desprovido de ideais e motivações políticas, conhecido por bajular os donos do
poder, serviu de sustentáculo ao ex-presidente
Bolsonaro. Após mais de 60 anos de carreira, retirou-se dos palcos por conta de
sua idade avançada, 92 anos.
A fatalidade colocou frente a frente
essas personalidades tão díspares numa pendenga judicial que se arrasta por
mais de 40 anos em torno do destino de um terreno no bairro do Bixiga em São
Paulo. Trata-se de uma área de 10 mil m2 que contorna o teatro
Oficina, marco cultural da cidade, onde Zé Celso com outros companheiros
iniciou sua carreira e no qual foram encenadas peças importantes como o Rei da
Vela de Oswald de Andrade e outros clássicos da dramaturgia.
Ocorre que a área em questão foi
arrematada pelo Grupo Sílvio Santos que nele pretendia erguer um monstrengo
imobiliário com cerca de mil apartamentos e outro tanto de vagas de garagem,
empreendimento que iria impactar severamente um bairro com tantas tradições,
além de desconfigurar o arrojado trabalho da arquiteta Lina Bo Bardi para a
casa de espetáculos, tida pelo jornal Guardian o melhor projeto arquitetônico
do mundo para um teatro.
A mastodôntica iniciativa comercial
desagradava não apenas Zé Celso como todos aqueles que gostariam que fosse dada
uma destinação mais nobre para a área, mais especificamente, a criação de um
parque, que melhor se harmonizasse com a icônica casa de espetáculos que
circunda.
São Paulo é uma das cidades mais
caóticas e desajeitadas do planeta, cuja expansão desordenada avança a reboque
dos interesses das incorporadoras como demonstra a famigerada revisão do Plano
Diretor do município, recentemente aprovada.
O bairro do Bixiga é um dos últimos redutos que ainda resiste e
mantém-se ativo com seus teatros, sua vida boêmia, suas cantinas e padarias
italianas, seus marcos históricos, suas pitorescas construções e uma famosa
feira de antiguidades.
Para resolver o impasse do terreno,
foi promovido em 2017 um surreal encontro que colocou frente a frente Zé Celso
e Sílvio Santos. A inusitada reunião (que pode ser apreciada no Youtube) mediada
pelo então prefeito João Dória mostrou o quão difícil é chegar a um entendimento
já que confronta concepções de vida bastante distintas. Sílvio repetidamente
indagava: “mas o que você pretende fazer com o terreno?”, insistindo que, a despeito
de ser rico, pagou caro pelo investimento do qual não pretendia abrir mão. Zé
Celso, por sua vez, retrucava não querer tomar posse do terreno e sim que se
tornasse um espaço livre para realização de atividades culturais e não
conseguia entender a falta de sensibilidade do empresário.
Curioso que Sílvio Santos, ao
contrário do que se possa imaginar, não é assim tão avesso ao tema tanto que ergueu
a poucos metros do local, o Teatro Imprensa, que se manteve em atividade com
sucesso por mais de 20 anos e só fechou as portas para reduzir as despesas do
grupo numa época de vacas magras, não obstante fosse superavitário. Afora isso,
Sílvio criou no SBT um núcleo de dramaturgia, sua esposa Íris é autora de
novelas, sua filha Cíntia roteirista e seu neto Tiago um consagrado ator.
Honrando essa trajetória, o que
custaria ao Homem do Baú, num gesto magnânimo de desprendimento, brindar o
terreno à capital paulista na qual o apresentador construiu seu império, num
parque que poderia até ganhar o seu nome? A cidade ficar-lhe-ia eternamente
grata e ele fecharia com chave de ouro seu currículo.
Grandes magnatas como Bill Gates,
Warren Buffett e George Soros doaram ou comprometeram-se a doar mais da metade
de sua fortuna para causas filantrópicas. Sílvio não precisa chegar a tanto.
Dono de um patrimônio de quase 2 bilhões de reais, o terreno representa uma
fraçãozinha de suas posses.
O dono da Tele Sena que já batalhou por quase um século de vida, poderia
encerrar brilhantemente sua jornada terrena com essa louvável demonstração de
generosidade. Mostraria que poderia trocar o ‘Topa Tudo por Dinheiro’ por uma
iniciativa nobre que lhe eternizasse como homem público. Ou imagina o
apresentador que vai levar seus bens para um baú da felicidade a sete palmos do
chão?