sexta-feira, 29 de novembro de 2013

ENSAIO SOBRE A CAGUEIRA


 
ENSAIO SOBRE A CAGUEIRA

Cagar ou, se preferirmos, defecar, fazer cocô, soltar o barro, é o nobre ato de cum­prir a necessidade funcional de expelir fezes. Em termos téc­nicos, é o ato de evacuar os dejetos através do relaxamento do esfíncter e das contrações do reto anal. É necessário para a eliminação do material sólido não absorvido pelo organismo.
 
Embora cagar definitivamente não seja um espetáculo visual, olfativo e auditivo que se preze, provoca, em deter­minadas áreas do corpo, enorme sensação de bem estar. Se não nos guiássemos apenas pelas avaliações dos sentidos, mas também pelas tênues variações sensoriais, sobretudo as do aparelho digestivo que repercutem no corpo todo, nosso jul­gamento seria outro. Embora, por razões culturais, poucos ousem reconhecer, inegavelmente há poucas coisas nesse mundo que propiciem tanto prazer quan­to uma bela cagada.

Até a palavra “cagar”, embora seja o termo simples e direto para descrever a operação, é considerada chula, sendo comum usarem-se eufemismos. A cultura tupiniquim é pródi­ga em criar hilárias expressões em sua substituição, tais como: “materializar opinião sobre o governo”; “cortar o rabo do macaco“; “aju­dar um amigo do interior a chegar no Rio”; “fazer um download”; “con­versar com a tia Deca”; “falar com Ari Barroso”; “afogar o moreno”; “tirar o quibe do forno”; “fazer um depósito do produto interno bru­to”; “fazer arte barroca na cerâmica”, “fazer um depósito no Banco de Boston”; “visitar a amiga Pri”; “mandar o elevador pro térreo”; “romper o tratado de Kyoto”. Tudo isso para evitar dizer em alto e bom tom: “dar uma cagada!”
 
O ato é, convenhamos, esteticamente feio, nojento. Uma cena grotesca retratada espetaculosamente ad nauseum, em close, por Pasolini no último episódio de Os Contos de Can­terbury. O cagar está aqui associado a algo diabólico, anticle­rical, profano, insolente, sórdido. Em contraposição, Buñuel, em O Fantasma da Liberdade, relativiza culturalmente os fun­damentos desse estigma, isentando-o de julgamentos morais. Confronta o diretor do cinema espanhol a abjeção coletiva ao cagar à celebração social do comer, mostrando que ambas as mani­festações são meras convenções sociais. Sentar-se em privadas ao redor de uma mesa com convidados, para evacuar coleti­vamente, poderia, em outro contexto, sob distintos valores, ter-se firmado historicamente como um ato solene de con­graçamento. Ao passo que exercer a função de se alimentar poderia, sob circunstâncias diversas, ganhar uma conotação moral repulsiva, devendo ser executada reservadamente.

Nossa sociedade criou até um aposento na residência no qual se pode privativamente livrar-se dos indesejados de­jetos, tendo o equipamento voltado para este fim recebido o elucidativo nome de “privada”. Nele se pode, na solidão de um ambiente fechado a chave, longe dos olhares reprovadores, perscrutadores e demolidores, exercer em paz e sem pressa aquele ato execrável mas necessário ao bom funcionamento do corpo humano. Não se podendo extirpar “os podres” que nossa condição animalesca exige, pelo menos que sejam re­solvidos num gabinete apartado e convenientemente aprovi­sionado.

A civilização ocidental teve de adaptar-se para prover o homem de banheiros adequados para que o produto da caga­da, ou seja, a bosta, pudesse ser higiênica e apropriadamente depositada. E provimento de esgotos para que esta fosse ra­pidamente descartada. Tais peculiaridades passaram ao largo dos manuais de história, preocupados apenas com a evolução e os desdobramentos dos eventos e dos processos de natureza política, econômica e social, nunca individual, fisiológica e, menos ainda, sanitária.

Vistas, no entanto, pela lente de um historiador perspi­caz, curiosas variações podem ser depreendidas desse particu­lar. Numa tradicional privada alemã, por exemplo, o buraco no qual as fezes desaparecem, depois de efetuada a descarga, ficava à frente, de modo que o primeiro cocô ficasse exposto, para ser cheirado e inspecionado, a fim de verificar possíveis sinais de doença ou anormalidade. Na privada francesa típica, ao contrário, o buraco fica atrás, ou seja, a intenção é que o cocô desapareça de cena o quanto antes. E a privada inglesa, que acabou por prevalecer historicamente sobre as demais, reflete uma espécie de síntese: a bacia apresenta um nível de água, de modo que as fezes flutuem sobre ela, visíveis, mas não com a finalidade de inspeção. É discernível, segundo essa abordagem, uma percepção ideológica sobre como o sujei­to relaciona-se com o excremento que sai de dentro de seu corpo. Hegel interpretou esse contraste como manifestação de atitudes existenciais distintas: a profundidade e meticulo­sidade reflexiva alemã, a pressa revolucionária francesa e o pragmatismo utilitário inglês que forneceu as bases para o ca­pitalismo. Em termos de postura política, essa tríade pode ser desmembrada em conservadorismo ideológico alemão, radicalismo revolucionário francês e liberalismo comercial inglês. No que se refere à expressão social: a metafísica e a poesia alemãs, a política francesa e a economia inglesa.

Segundo o pensador Slavoj Zizek, “a referência a privadas permite visualizar o mecanismo subjacente nas três atitudes diferentes em relação ao excesso excrementício: fascínio contemplativo ambíguo, tenta­tiva de livrar-se rapidamente do excesso desagradável e tratamento prag­mático do excesso como objeto a ser dado um fim de maneira apropria­da.”

Ilações ideológicas à parte, o fato é que uma privada macia e confortável permite que esse ato supremo, ainda que segregado socialmente, seja consumado, por ingleses, porto­-riquenhos, neo-zelandeses ou norte-coreanos, com conforto e prazer. Ao adentrarmo-nos no banheiro e vermo-nos a sós com a privativa privada, exercendo total domínio sobre aquele ambiente resguardado, alvo e higienizado, sentimo-nos como reis ao nos dirigirmos ao trono, podendo nos desopilar mag­nanimamente de nossas detestáveis impurezas plebeias.

Cagar é um ato de desintoxicação, purificação do orga­nismo, que expulsa a matéria ruim, a parcela da alimentação rejeitada ou inaproveitada pelo corpo, coroando um maravi­lhoso processo metabólico. Possui um sentido catártico de depurar o corpo, concretizado ao expelir aquela matéria orgâ­nica, argamassa que o aparelho digestivo rejeitou e despenca bunda afora rumo ao rio mais próximo, oceano Atlântico, ou seja lá em qual outro infeliz depositário, onde estará se re­volvendo com os seus iguais, num autêntico mar de bosta. Atende a um clamor interno, dando vazão àquilo que, dentro de você, pede por libertação.

Concluída a operação desengate, quando, enfim, aquele pedaço de nós que não chega a ser nosso, desprendeu-se, tal como um filho bastardo, do corpo, pode-se observar o resul­tado final: aquela mecha marrom pulsando ainda, borbulhan­te, saída quentinha do forno, repousando solitária, acabrunha­da, na água. Uma vitória sobre nós mesmos.

Talvez seja eu acusado de mau gosto, escatologia etc., em aqui reverenciar o cagar e dedicar obstinadamente o uso reflexivo do verbo a tão ‘desagradável’ assunto. Considero es­sas eventuais críticas improcedentes. Escatologia, não custa lembrar, tem um significado bíblico-filosófico relacionado aos últimos eventos da história do mundo, o fim do processo. Es­tamos vivendo tempos escatológicos. Talvez essa condenação preconceituosa tenha origem numa equivocada associação entre o ato de excretar e o objeto da excreção, o excremento. Uma confusão entre processo e resultado.

Realmente, programas que assistimos na TV em pleno horário nobre estão carregados de ‘escatologia’ em sua mais abjeta acepção, sendo, num justificável arroubo de indignação, inapropriadamente qualificados como“merda”. Tremenda injustiça contra esta rene­gada substância que, embora expulsa do organismo, apenas cumpre com presteza sua função durante o ato fisiológico, consolidando numa homogênea e inteiriça massa sólida todos os elementos que nosso corpo dispensou. Ao contrário dos programas de TV que acarretam consequências sociais, psicológicas e culturais perniciosas, deles nada se aproveitando, a merda, tratada sanitariamente, é inócua, podendo até ser utilizada com insu­mo.
 
Sabe a coitada que não é benquista. Então, vai-se embora triste, rejeitada, órfã, descarga abaixo, sem protestar, seguindo seu triste caminho que a afasta o mais distante possível da fofa e afetuosa bunda da qual se apartou. Passa a integrar, assus­tada, uma massa indistinta a ser levada a destino incerto, até perder totalmente sua identidade, suas características originais e os elementos herdados de quem a gerou. Morre sem deixar saudades, embora os constituintes orgânicos permaneçam as­sombrando nossa civilização, ameaçadas por crescentes mon­tanhas de bosta, anonimamente produzida, dia após dia.

 Os resíduos de cocô que não vão pro vaso, as fezes do cachorro e do gato que o cidadão consciente cata e joga nos cestos não têm destino mais nobre. Entram, na hora da separação, como lixo orgânico, a pior das categorias, já que é a única que não pode ser aproveitada na reciclagem. É o lixo do lixo. Tudo quanto é inhaca que não dá para reaproveitar entra nesse item. Nem cabe nomear para poupar o pobre leitor de mais um fator de náuseas. Cuidamos civicamente de separar as latas de refrigerantes, os metais, as garrafas plásticas, os jornais, o papelão, etc. O pobre do lixo orgânico vai para o pior dos mundos. Enche de repugnantes moscas verdes. Fede.
 
Injustiça! Isso retrata a ignorância com que nossa so­ciedade hipócrita trata da questão. A merda e o lixo orgânico têm fundamental importância como adubo natural, o humus. Substituem com muito mais vantagem os adubos químicos no provimento dos nutrientes necessários para as plantas. Muita comida que chega à nossa mesa deve-se à ‘merda reciclada’ que ajudou a fornecer os nutrientes às lavouras. E nunca ninguém reclamou que os legumes e as frutas viessem com gosto de merda. Se, ao invés de consumirmos produtos tratados com adubos químicos que causam sérios problemas de intoxicação e envenenamento, usássemos só produtos orgânicos, tratados com a legítima bosta, nossa saúde melhoraria. Interessante que os produtos tratados com bosta ficam, nos supermercados chiques, expostos em prateleiras especiais e são mais caros do que os demais. Prova de que a merda é um insumo nobre.

Não bastasse isso tudo, cagar é um ato cultural. Quan­tos livros não foram devorados enquanto defecamos? Mui­tos intelectuais, assentados no aconchego de uma confortável privada, estendem ao máximo, sem culpa, esses extraordiná­rios momentos culturais que ensejam a reflexão e estimulam a imaginação. Quem sabe algumas das grandes invenções de utensílios de que hoje fazemos uso ou algumas das grandes obras da literatura mundial, não tiveram sua origem e sua con­cepção no decorrer de uma boa cagada.
 
Boa parte de nossa vida é passada nessa atividade, in­cluindo seus complementos (descer as calças, esperar o pro­duto dignar-se a sair, limpar o rabo e lavar as mãos). Ao que presumo, dedicamos, numa estimativa conservadora, uns 20 minutos ao dia para cumprir esse ritual, o que representa cerca de 1,3% do nosso dia. Isso, para alguém que vive 75 anos, dá cumulativamente quase um ano de vida. Para quem costuma ir duas vezes ao dia, o tempo de castigar a porcelana chega a dois anos! Possivelmente mais do que Proust dedicou (sol­tando o barro?) para escrever os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, em crise existencial, imaginando o tempo perdi­do que poderia estar dedicando a coisas úteis, ao invés de ficar sentado no trono fazendo merda.

Já escutei dizer em algum lugar que uma vida saudável começa com o bom funcionamento do intestino. Para tanto, dá-lhe fibra, semente de linhaça, bagaço de laranja, farelo de trigo, ameixa seca, semente de mamão, coalhada fresca e bas­tante água.
 
 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

DIGNÍSSIMO CANALHA



Pelo presente instrumento, venho dirigir-me a vossa excelência. Com minúsculas e na segunda pessoa, pessoa de segunda que és, mauricinho de nariz empertigado. Tu, que te ocultas, sorrateiro, por trás dessa impecável e pretíssima toga funesta. Tu que recebes aprumado a reverência do povo de joelhos à espera de tuas soberanas e irretocáveis decisões peremptórias. Tu que estás imbuído da divina prerrogativa, intransferível e vitalícia, de deliberar sobre o destino dos homens que habitam o mun­do dos vivos, já que o dos mortos foge à tua jurisdição, instância suprema à do teu supre­mo (embora nutras anseios em manter paridade e equiparação divina com Aquele que exerce tal competência). Tu que reclamas indignado por direitos inalienáveis e vives na intimidade inescrutável de tua vida pri­vada de práticas inconfessáveis. Tu mesmo, nobre calhorda, que de tanto exercer o ofício de julgar os outros, passaste a te julgar acima dos outros.
Venho oficiar-te, honorável patife, que encontro mais retidão e honra na palavra espontânea e honesta que brota do coração de um humilde homem iletrado do povo que no alfarrábio que sustém tuas áridas, infindáveis, mirabolantes e ordinárias sentenças ordinárias. As mesmas que apões em papel pergaminho com letras douradas, fazendo-as constar dos anais onde exibes tua soberba grandiloquência farisaica e tua rocambo­lesca sapiência estéril.
Sem qualquer constrangimento, amealhas recursos subtraídos do povo injustiçado para manter intacto esse intrincado e indecifrável sistema, tão inócuo quanto iníquo, que qualificas cinicamente de Justiça, a fim de cobrir com aura de magnificência e infalibilidade essa espeta­culosa e suntuosa pantomima patética e embusteira que estarrece as legiões dos sem-justiça desse país, mantidas sob o jugo do teu julgar.
Cultivaste esse interminável cipoal de leis, decretos, normas, códigos, tratados, regimentos, resoluções, regula­mentações, pareceres, dispositivos e medidas provisórias, para reservares a ti próprio o monopólio do conhecimento e das práticas a ti outorgadas tautologicamente “por lei”, afastando o povaréu inculto de teu demarcado territó­rio. Para que, na mesma medida em que amplias a doutrina do direito, reduzas o primado da justiça.
A chave de tua inoperância chama-se prazo. Conside­raste, eminente pulha, que, após décadas de espera, a sentença já foi proferida, independente do transitado em julgado? Abstrais, emérito canalha, a variável tempo sob pre­sunção de que o tempo é uma mera ‘questão de tempo’. Adias, protelas, procrastinas, prorrogas, retardas, demoras, protrais, diferes, pospões, alongas, espichas, espacejas, alastras, esticas, dilatas, intervalas, encompridas, acresces, amplias, expandes, empurras com a barriga. Pois, então, devo informar-te, distinto safardana, que quem aguarda por anos, seja nutrindo a raiva da privação de benesses não fruídas, seja gozando do deleite de penas não cumpridas, já é repositório da sentença, seja esta qual for. Em meio a tantos réus, jurados e testemunhas, apenas um deve ser declarado culpado em todas as instâncias: tu, criatura ignóbil.
Sai da tocaia, egrégio velhaco. Desce desse palácio de letras, capítulos, parágrafos, alíneas, incisos, caputs e cláusulas em que te enclausuras. Cumpre salientar, excelentíssimo pústula, que as cruas ruas, inobserváveis das janelas do palácio que ergueste (sem decurso de prazo) para te isolares da re­alidade de fato e de direito, estão repletas de malfeitores que levianamente livrastes das masmorras. Não por um senti­mento benevolente de perdão ou por uma crença abnegada no poder de recuperação humana. Mas por um ardilosa e oblíqua interpretação das normas vigentes. Delinquentes de toda a es­pécie a quem remiste da pena, hoje libertos de punição, zombam, sob tua retumbante indiferença, dos tolos que se pautam em princípios e honradez.
Vivem os justos à margem das formalidades legais que usas para agrilhoar os cidadãos, a fim de emparelhares todos pelo mesmo nível de calhordice de que imaginas serem, por na­tureza, dotados. Por certo, espelhando tua maneira de te com­portar e de enxergares os homens para necessitarem de tua mediadora e interesseira presença.
Sob o manto do teu venerável ‘estado de direito’, corruptos, patifes, ladrões de todas as espécies ascendem aos postos de direção com a tua serena condescendência. Mais: com a tua cruel cumplicidade. São estes que tratas com a máxima leniência, amparando-os com a força irrefutável das brechas da lei, aplicando-lhes impiedosamente draconiana indulgência e into­lerância zero. Cobrindo a impunidade com o manto legalista da imu­nidade.
De quem é a culpa? “Dos legisladores, do governo, da polícia, da falta de juízes, da falta de vagas no sistema prisional, da falta de investimento, da má distribuição da renda, do desemprego, da falta de políticas públicas, dos baixos salários, da alta dos juros, do neoliberalismo, da crise do euro, da colonização portuguesa, da gripe suína, do derretimento das calotas polares”, bradas indignado. Tu, homo vermis, és o único triplamente qualificado como “not guilty” nessa história. Justo tu! “Por falta de provas”, provas.
Todo teu empenho é de não punir. Inocentes ou culpa­dos, pouco importa. ‘In dubio pro reo’, desde que teus honorá­rios sejam quitados com correção, exatidão, integri­dade e... justiça.
E assim, pelos mais variados pretextos, vais libertan­do das grades todos os poderosos, reservando os horrores dos calabouços aos despossuídos que não participam do pecúlio que sustenta a devassidão moral que apadrinhas e consagra esse país como o paraíso da impunidade.
Deixa de hipocrisia. A quem pretendes enganar dizen­do que és a fonte da Justiça? Teu ofício é apenas advogar em prol de vermes, devolvendo­-lhes em serviços pérfidos o vil metal que banca o suntuoso padrão de vida que ostentas. A verdadeira justiça é o oposto de ti. É tornar o mundo mais digno, as pessoas olhando-se de frente, sem dissimulações, com confiança mútua. Prescindindo de teus sórdidos préstimos.
Justiça seja feita: quem te sustenta, respeitável biltre, são apenas os safados. Crápulas que, dispensando nobres considerações éticas, estudam teus intrincados preceitos e se formam doutores para assimilar os meios legais, penais, constitucionais e amorais de permanecer impunes e qualificarem-se a ingressar em tuas ro­dinhas infames. Partilharem do papo do cafezinho do fórum. Onde, restritas às indevassáveis paredes que os protegem, ro­lam torpezas inimagináveis. Tornam-se teus amigos e cupinchas. Uma corporação fechada de rábulas parasitas. Justamente!
Os princípios de retidão e civilidade, trazemo-los dentro de nós. Num mundo de justos, tua justiça não se ajusta. Gente honrada entende-se entre si, sem necessitar da tua protocolar intermediação. Bastam os princípios. Quem carece de lei são os que dela vivem à margem. Se para os honrados, é des­necessária e para os bandidos, ineficaz, para os da escória que integras, é verba no bolso.
Data vênia, ilustríssimo, vai pra p* que te pariu.




terça-feira, 10 de setembro de 2013

UM LUGAR CHAMADO ESPERANCINA



– Atenção! Vamos dar início à nossa audiência com representan­tes dos três poderes, para discussão das mudanças em nosso município. Como é sabido, o povo de Esperancina, em protesto contra décadas de corrupção e impunidade, saiu às ruas para exigir mu­danças e ocupou os prédios públicos. O prefeito, o vice e seus secretários fugiram para os municípios vizinhos, para não ser caçados (com ç) pelos crimes de malversação de recursos pú­blicos, corrupção ativa e passiva, fraudes em licitação, evasão de divisas, enriquecimento ilícito, sonegação fiscal, extorsão, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, apropriação indébi­ta, prevaricação, estelionato, formação de quadrilha, associa­ção com o crime organizado, desvio de merenda escolar, tráfico de entorpe­centes, estupro e pedofilia. Pretendem reaver o poder através de ação de reintegração movida por seu advogado, Marcius Tomaso Bostus, que alega ilegalidade na obtenção das provas e ausência de flagrante. Solicita foro privilegiado e julgamento especial pelo STF. Responderão pelos crimes em liberdade.
... O presidente da Câmara e três dos nove vereadores, também pegos com a mão na massa, tiveram de renunciar para não ser cassados (com ss) pelo povo indignado. A Câ­mara Municipal teve que aprovar, em regime de urgência, sob pressão popular, um novo decreto que transfere o poder para o Conselho Municipal de Transição formado por munícipes escolhidos por consenso, sem nenhuma objeção, pelo povo concentrado na Praça da Matriz, na semana passada.
... Ofereceram-se como Conselheiros  e foram aprovados por aclamação, sem direito a qualquer remuneração salarial: o Sr. Ma­noel, dono do bar da Praça da Matriz; o Sr. Pedrão, o moto­rista de ônibus escolar mais idoso da cidade; a dona Adelaide, aposentada, que cuida voluntariamente dos jardins da praça; a Dona Gertrudes, que tem a lojinha de armarinhos na Rua Caminho da Roça; o Sr. Chicão, goleiro do time de várzea da cidade; o Sr. Nenê, técnico em informática, que fez o site da Prefeitura; a Sra. Maria José, professora primária da escola municipal; a Sra. Patrícia, dona do único ateliê da cidade; o Dr. João Batista, médico pedia­tra; e o padre Santelmo, recentemente empossado na paróquia central.
... Eu, vocês sabem, na ausência do prefeito, do vice e do presidente da Câmara, fui escolhido pelo Conselho. Sou o Aristides, o Tide, técnico em contabilidade, nomeado como prefeito inte­rino até novas eleições munici­pais, dentro de três meses.
... Vou, de início, fazer um protesto individual con­tra a escolha do goleiro Chicão para o Conselho. Depois do frango que ele tomou na partida contra aquele timeco de Ria­chão de Dentro, devia ter ficado em concentração treinando para não dar mais vexame. Falaí, Chicão! O que é isso, meu? Aquele chute de falta, com a bola vinda pelo alto, dava para ter socado para escanteio. Mas, no final, conseguimos empatar. Está perdoado! Estamos de olho, hein?
... Continuando... Ficou aprovado pelo colegiado e eu, na qualidade de prefeito, sanciono, que o orçamento para o próximo exercício vai ter a seguinte distribuição: à Câmara Municipal fica destinado 1% da receita total do município; à Procuradoria, tam­bém 1%; para os órgãos do município,  mais 1%. Os 97% restantes, vão ser aplicados em centros de saúde, escolas, creches, moradia, saneamento, praças de esporte e pagamento de salários de professor, médico, e outras profissões de primeira necessidade.
– Nobre prefeito interino, sou o representante dos ve­readores de Esperancina nessa audiência pública. Meu nome é Eneas. Sou suplente empossado do vereador Ausêncio Ro­balo. Tenho em mãos alguns números que, preocupado, submeto a V. Sa. A arrecadação do nosso município esperancinense nesse ano vai ser por volta de 100 milhões de reais. Nosso minguado salário é de 14 mil por mês. Vezes 15 que é o número de salários que recebemos anualmente, fruto da nossa incansável labuta em prol do labo­rioso povo desse promissor município, dá 210 mil anuais. Multiplicando-se por 9 vereadores que somos, resulta em 1,89 milhão. Mas não podemos esquecer das nossas mordom..., digo, da ajuda de custo para as necessidades bá­sicas: auxílio moradia, auxílio viagem, plano de saúde, correspondência, gráfica, revista Caras, linhas telefôni­cas, internet, TV a cabo, combustível, segurança, motorista, pedicura, engraxate, personal trainer. Mais a troca da frota que já tem 2 anos, para modelos mais novos, blindados, com airbag duplo, freios ABS, bancos de couro, ar refrigerado, TV, GPS, Bluetooth e computadores de bordo. E como fazer para que cada parlamentar abra mão de seus imprescindíveis assessores de confiança, pessoas de nossas dignas famílias, gente gabaritada, de respeitabilidade na comunidade? Todos cidadãos de bem, que dependem dos exíguos vencimentos para viver.
– Nobre vereador. Sou um mero empregado. Não tenho muito conhecimento desses assuntos legislativos. Só sei fazer balanço. De um lado, ativo, de outro, passivo. Contas a pagar, despesas diferidas, demonstrativo de resultados. Meu pa­pel aqui é repassar verba. Bom, não tenho todo o tempo do mundo para o senhor. Próximo!
– Sou representante dos procuradores, Sr. prefeito, e venho trazer nossa indignação ante essa medida descabi­da que carece de fundamento legal, não devendo prosperar. Permissa vênia, que história é essa de cortar nossos honoráveis honorários, nossa sagrada grana protegida por cláusula pétrea e nossos privilégios transitados em julgado?
– Digníssimo amigo, acho que o nobre doutor não en­tendeu. Agora quem manda por aqui é o povão, cansado de desvios e maracu­taias. O negócio é simples: eles que pagam as contas, eles que decidem e está decidido. Vocês ficam com 1%.  Qualquer objeção, entrem com um mandado de segurança com liminar e medida cautelar contra o povo de Esperancina.
Data vênia, isso é um ultraje doloso ao equilíbrio dos três poderes, ao estado de direito e à Constituição de 1988. Nosso salário é protegido por isonomia e privelegium immunitatis, pelo direito adquirido e pela coisa julgada. Iremos ajuizar com agravo e impetrar ação ad cautelum, com efeito suspensivo para homo­logar em última instância o acórdão do STF.
– Por mim, os senhores podem ir até ao Papa. Próxi­mo!
– Sr. prefeito, sou o representante das secretarias e autarquias municipais. Ficamos sabendo que agora nossos ór­gãos só receberão 1% da verba do município. Somando todo o dinheiro para despesas de pessoal e itens imprescindíveis como papel higiênico, tinta de impres­sora, cafezinho, incenso, jontex lubrificado, pipoca de micro­onda, vela de bolo, salame defumado, revista de sudoku, caipi­roska etc. já dá uns 50%.
– Pois é! Como chefe do Executivo, ordeno que se reúnam e estudem como fazer para cumprir as novas normas. As regras estabelecidas pelo populacho são claras. Vocês terão que cortar 98% de tudo o que estava previsto. Mãos à obra!
– Ilustríssimo prefeito, não podemos cortar salários nem colocar funcionário estável na rua. Não é possível mexer desta forma no orçamento!
– Sugiro fazer pagamentos em precatórios. Pa­guem as dívidas com títulos do município com vencimento para daqui a 50 anos, sem correção, quando as coisas já esta­rão assentadas e equilibradas... Quero lembrar que professores, médicos, lixeiros, guardas municipais e ou­tras funções essenciais entram como necessidade básica. Esses continuam ganhando o que ganhavam estando prevista uma correção salarial de 150%, a partir do mês que vem, para estas categorias, tão necessárias para nossos cidadãos.
... Bem, senhores, é isso. O sol está começando a ficar forte. Está chegando a hora do almoço. Não esqueçam que hoje à noite tem festa do milho na Praça da Matriz às 19:30. Tragam as crianças que vai ter também doce e bolo.
... Atenção! Acabo de receber uma notícia preocupan­te. Chegou há pouco uma notificação do Palácio do Planalto. Parece que Brasília está apreensiva ante o rumo dos acon­tecimentos aqui em Esperancina. A nota fala que a ordem institucional foi quebrada e nos ameaça com uma intervenção federal para reconduzir ao cargo os antigos salafr..., digo, mandatários para “restabelecer a vontade popular manifestada nas urnas e recompor a ordem democrática”. Tenho in­formações de que está sendo preparado um batalhão de cho­que para reintegrar à força os destituídos. Bom, gente. Enquanto durar esta fase, façamos o que o povo de nós espera.
...Esperancina não pode morrer




quinta-feira, 29 de agosto de 2013

GONÇALVES DIAS REVISITADO


GONÇALVES DIAS REVISITADO 


Seu Gonçalves, peço um favor:
Facultar-me tua obra prima.
A Canção do Exílio me inspirou,
Pra eu tentar cá umas rimas.
Tu falavas em palmeiras,
Flores, campos, sabiás.
Belas coisas brasileiras,
Faziam a gente se emocionar.
De longe vias um Brasil
Que, de tão longe, ficou pra trás.
A terra que aqui se descobriu,
Agora nem com mil Cabrais.

Voltar pra cá era tua vontade.
Só que a volta não tem mais volta.
De fora, tu sentias saudade.
De dentro, eu sinto é revolta.
De olhar como o descaso
Desfez este belo país.
O que parecia ser atraso,
Tornava a gente mais feliz.
O governo não faz nada
E o brasileiro tudo engole.
Nossa gente é alienada.
Eta povo bunda mole!
No conformismo, fica imerso.
Não sai de cima, tampouco goza.
Então vou protestar em verso,
Que já me cansei de prosa.

Vamos parar de nhenhenhém,
E botar os pingos nesses i’s.
Prometo não poupar ninguém.
Não há inocentes nesse país.
Até os tons de nossa bandeira
Estão ficando desbotados:
O azul tá sujo, o ouro já era
E o verde tá c’os dias contados. 

Nossa terra tinha palmeiras
Onde cantava o sabiá.
A palmeira virou fogueira,
O sabiá virou jantar.
Nosso céu tinha estrelas,
Tantas, nem dava pra contar.
Hoje mal consigo vê-las,
Tanto enxofre tem no ar.
Nossas várzeas tinham flores,
Têm hoje esgoto clandestino.
É só ventar, vêm uns fedores.
Era pulmão, hoje é intestino.
Nossos bosques tinham vida,
Agora têm lixo hospitalar.
Jogaram lá droga vencida,
Nem urubu pra encarar.
As palmeiras tinham ninhos.
Hoje têm ninho de cupim.
Se estão faltando passarinhos,
Tem barata com asas a não ter fim.

Nossas verduras são coloridas,
Cada legume colossal.
O segredo: os herbicidas
E agrotóxico a dar com pau.
Nossa fruta tem mais venenos
Pra deixar de vir bichada.
Só que o sabor ficou de menos
E um asséptico gosto de nada.
Todas vêm com a mesma roupa:
Goiaba, manga, abacaxi.
Enquadraram tudo em polpa
Ou como suco Maguary.

Dizem que a gente é o que come.
Aí vieram os transgênicos.
Não acabarão com a fome,
Mas deixarão todos anêmicos.
Tantos bichos (mas que dó!)
Já se foram, não voltam mais.
Nossos filhos, em breve, só
Em fotos, vão ver animais.

Bichos, plantas em extinção,
A cada dia aumenta a lista.
Quem define a preservação
É a bancada ruralista.

“Tem pet shop de montão,
Pra nossa fauna abrigar.
Tem frango, porco, gato e cão.
Só falta a porra do sabiá"

O tal progresso do país
Deu, em alegria, quanto por cento?
Se não for pra ser feliz,
De que vale o crescimento?

Os tecnocratas fazem a conta:
A economia tá evoluindo.
Só que essa conta não leva em conta
Que a qualidade ta decaindo.
Dizem que o país cresceu,
Dobrou a renda e o produto.
Se aumentou não foi o meu,
Pois dessa grana não vi um puto.
O agregado interno bruto
As pessoas embrutece.
Quanto mais sobe o produto,
Mais vejo gente que padece.
O velho lema eu reviso
Para os tempos atuais:
“Produzir é que é preciso.
Navegar, viver, já não são mais”.
Culpa da globalização,
Tudo centrado no mercado.
Uns poucos ficam com o filão,
O resto, marginalizado.
Criou-se um oásis de riqueza
Num planeta que se esfrangalha.
Alguns banqueteiam-se à mesa,
O resto vive de migalhas.
Acabaram com o fiado
E a vendinha do Juvenal.
Foi todo mundo massacrado
Pelo poder do capital.

Encheram de supermercado.
O BNDES assim o quis.
A grana que ‘farta’ pros coitados,
É farta pro Abílio Diniz.
Esse progresso é macabro,
Na cidade deixa mazelas.
Pra cada shopping que eu abro,
Aparecem dez favelas.

E o governo baixa as taxas
Pra vender mais carro novo.
Multiplicar a grana em caixa
Ferrando a saúde do povo.

O governo não tem planos,
Sempre tudo sai às pressas.
O horizonte é quatro anos.
Depois disso, não interessa.
Hoje não tem repressão.
Reduziram os gastos bélicos.
A grana vai pro mensalão
E pra adular os evangélicos.
PT, PV ou PQP,
O partido não interessa.
Assim que chega ao poder,
O cara esquece as promessas.

Bons exemplos não vêm de cima
E a gente dança conforme a trilha.
Planalto com ‘mãos ao alto’ rima,
E Brasília rima com quadrilha.
É roubalheira à vontade.
No fim do túnel, luz não vemos.
Restaure-se a moralidade
Ou todos nos locupletemos.
Justiça é cega ou não quer ver
A onda de criminalidade.
Seguir a lei, quem vai querer,
Na terra da impunidade?
O presidente progressista
Investe em obras e energia.
Meio-ambiente? Fim da lista.
Deixa lá em banho-maria.

O popular governador
É dono de jornais e rádios.
Pagar melhor o professor?
Melhor fazer novos estádios.

Lá vem o prefeito ‘quebra-galho’
C’uma floresta de CNPJ
E muitos postos de trabalho.
Abaixo a árvore! Ela não vota.

Nossos fracos governantes
Seguem sempre na esteira
Dos que já erraram antes,
Ficamos sempre na rabeira.
Cá ainda pulsa a natureza,
Mesmo com os furos no ozônio.
De que vale gerar riqueza,
Dilapidando o patrimônio?
Parece até o esperto da lenda.
Ovos de ouro ele juntava.
Pra crescer logo sua fazenda,
Matou a galinha que os botava.
Feito o estrago, o responsável
No futuro não vai estar lá.
Pelo planeta inabitável,
Quem nossos filhos vão cobrar?


Um modelo que leve em conta
Nossa riqueza natural
Faria deste um país de ponta
Na nova ordem mundial.
Natureza exuberante,
Turismo em potencial.
E nossos broncos governantes
Só investem no Pré-Sal.
O programa nuclear
Vai trazer prosperidade.
Sua energia vai gerar
Tumores e eletricidade.
A medicina a morte adia,
Dando ao corpo sobrevida.
Se a vida hoje tem mais dias,
Os dias já não têm mais vida.

Bons dias os de Gonçalves Dias.
Os de hoje em dia já não são.
Se o inverno e o outono têm mais dias,
Primaveras não se verão.
Se o poeta estivesse vivo,
No exílio estaria mais feliz.
Não teria mais motivo
Pra tecer loas ao seu país.

O infeliz do sabiá
Era feliz e não sabia.
Ressabiado, foi gorjear
Em uma outra freguesia.
Palmeiras, flores, sabiás:
Coisa boa não se herda.
Meia volta, marchar pra trás!
Que o tal progresso deu em merda.