ENSAIO SOBRE A CAGUEIRA
Cagar ou, se preferirmos, defecar, fazer cocô,
soltar o barro, é o nobre ato de cumprir a necessidade funcional de expelir
fezes. Em termos técnicos, é o ato de evacuar os dejetos através do
relaxamento do esfíncter e das contrações do reto anal. É necessário para a
eliminação do material sólido não absorvido pelo organismo.
Embora cagar definitivamente não seja um espetáculo
visual, olfativo e auditivo que se preze, provoca, em determinadas áreas do
corpo, enorme sensação de bem estar. Se não nos guiássemos apenas pelas
avaliações dos sentidos, mas também pelas tênues variações sensoriais,
sobretudo as do aparelho digestivo que repercutem no corpo todo, nosso julgamento
seria outro. Embora, por razões culturais, poucos ousem reconhecer,
inegavelmente há poucas coisas nesse mundo que propiciem tanto prazer quanto
uma bela cagada.
Até a palavra “cagar”, embora seja o termo
simples e direto para descrever a operação, é considerada chula, sendo comum
usarem-se eufemismos. A cultura tupiniquim é pródiga em criar hilárias
expressões em sua substituição, tais como: “materializar opinião sobre o
governo”; “cortar o rabo do macaco“; “ajudar um amigo do interior a chegar no
Rio”; “fazer um download”; “conversar com a tia Deca”; “falar com Ari
Barroso”; “afogar o moreno”; “tirar o quibe do forno”; “fazer um depósito do
produto interno bruto”; “fazer arte barroca na cerâmica”, “fazer um depósito
no Banco de Boston”; “visitar a amiga Pri”; “mandar o elevador pro térreo”;
“romper o tratado de Kyoto”. Tudo isso para
evitar dizer em alto e bom tom: “dar uma cagada!”
O ato é, convenhamos, esteticamente feio, nojento.
Uma cena grotesca retratada espetaculosamente ad nauseum, em close, por
Pasolini no último episódio de Os Contos de Canterbury. O cagar está
aqui associado a algo diabólico, anticlerical, profano, insolente, sórdido. Em
contraposição, Buñuel, em O Fantasma da Liberdade, relativiza
culturalmente os fundamentos desse estigma, isentando-o de julgamentos morais.
Confronta o diretor do cinema espanhol a abjeção coletiva ao cagar à celebração social do
comer, mostrando que ambas as manifestações são meras convenções sociais.
Sentar-se em privadas ao redor de uma mesa com convidados, para evacuar coletivamente,
poderia, em outro contexto, sob distintos valores, ter-se firmado
historicamente como um ato solene de congraçamento. Ao passo que exercer a
função de se alimentar poderia, sob circunstâncias diversas, ganhar uma
conotação moral repulsiva, devendo ser executada reservadamente.
Nossa sociedade criou até um aposento na residência
no qual se pode privativamente livrar-se dos indesejados dejetos, tendo o
equipamento voltado para este fim recebido o elucidativo nome de “privada”.
Nele se pode, na solidão de um ambiente fechado a chave, longe dos olhares
reprovadores, perscrutadores e demolidores, exercer em paz e sem pressa aquele
ato execrável mas necessário ao bom funcionamento do corpo humano. Não se
podendo extirpar “os podres” que nossa condição animalesca exige, pelo menos
que sejam resolvidos num gabinete apartado e convenientemente aprovisionado.
A civilização ocidental teve de adaptar-se para
prover o homem de banheiros adequados para que o produto da cagada, ou seja, a
bosta, pudesse ser higiênica e apropriadamente depositada. E provimento de
esgotos para que esta fosse rapidamente descartada. Tais peculiaridades
passaram ao largo dos manuais de história, preocupados apenas com a evolução e
os desdobramentos dos eventos e dos processos de natureza política, econômica e
social, nunca individual, fisiológica e, menos ainda, sanitária.
Vistas, no entanto, pela lente de um historiador
perspicaz, curiosas variações podem ser depreendidas desse particular. Numa
tradicional privada alemã, por exemplo, o buraco no qual as fezes desaparecem,
depois de efetuada a descarga, ficava à frente, de modo que o primeiro cocô
ficasse exposto, para ser cheirado e inspecionado, a fim de verificar possíveis
sinais de doença ou anormalidade. Na privada francesa típica, ao contrário, o
buraco fica atrás, ou seja, a intenção é que o cocô desapareça de cena o quanto
antes. E a privada inglesa, que acabou por prevalecer historicamente sobre as
demais, reflete uma espécie de síntese: a bacia apresenta um nível de água, de
modo que as fezes flutuem sobre ela, visíveis, mas não com a finalidade de
inspeção. É discernível, segundo essa abordagem, uma percepção ideológica sobre
como o sujeito relaciona-se com o excremento que sai de dentro de seu corpo.
Hegel interpretou esse contraste como manifestação de atitudes existenciais
distintas: a profundidade e meticulosidade reflexiva alemã, a pressa
revolucionária francesa e o pragmatismo utilitário inglês que forneceu as bases
para o capitalismo. Em termos de postura política, essa tríade pode ser
desmembrada em conservadorismo ideológico alemão, radicalismo revolucionário
francês e liberalismo comercial inglês. No que se refere à expressão social: a
metafísica e a poesia alemãs, a política francesa e a economia inglesa.
Segundo o pensador Slavoj Zizek, “a referência a
privadas permite visualizar o mecanismo subjacente nas três atitudes diferentes
em relação ao excesso excrementício: fascínio contemplativo ambíguo, tentativa
de livrar-se rapidamente do excesso desagradável e tratamento pragmático do
excesso como objeto a ser dado um fim de maneira apropriada.”
Ilações ideológicas à parte, o fato é que uma
privada macia e confortável permite que esse ato supremo, ainda que segregado
socialmente, seja consumado, por ingleses, porto-riquenhos, neo-zelandeses ou
norte-coreanos, com conforto e prazer. Ao adentrarmo-nos no banheiro e
vermo-nos a sós com a privativa privada, exercendo total domínio sobre aquele
ambiente resguardado, alvo e higienizado, sentimo-nos como reis ao nos dirigirmos
ao trono, podendo nos desopilar magnanimamente de nossas detestáveis impurezas
plebeias.
Cagar é um ato de desintoxicação, purificação do
organismo, que expulsa a matéria ruim, a parcela da alimentação rejeitada ou
inaproveitada pelo corpo, coroando um maravilhoso processo metabólico. Possui
um sentido catártico de depurar o corpo, concretizado ao expelir aquela matéria
orgânica, argamassa que o aparelho digestivo rejeitou e despenca bunda afora
rumo ao rio mais próximo, oceano Atlântico, ou seja lá em qual outro infeliz
depositário, onde estará se revolvendo com os seus iguais, num autêntico mar
de bosta. Atende a um clamor interno, dando vazão àquilo que, dentro de você,
pede por libertação.
Concluída a operação desengate, quando, enfim, aquele
pedaço de nós que não chega a ser nosso, desprendeu-se, tal como um filho
bastardo, do corpo, pode-se observar o resultado final: aquela mecha marrom
pulsando ainda, borbulhante, saída quentinha do forno, repousando solitária,
acabrunhada, na água. Uma vitória sobre nós mesmos.
Talvez seja eu acusado de mau gosto, escatologia
etc., em aqui reverenciar o cagar e dedicar obstinadamente o uso reflexivo do
verbo a tão ‘desagradável’ assunto. Considero essas eventuais críticas
improcedentes. Escatologia, não custa lembrar, tem um significado
bíblico-filosófico relacionado aos últimos eventos da história do mundo, o fim
do processo. Estamos vivendo tempos escatológicos. Talvez essa condenação
preconceituosa tenha origem numa equivocada associação entre o ato de excretar
e o objeto da excreção, o excremento. Uma confusão entre processo e resultado.
Realmente, programas que assistimos na TV em pleno
horário nobre estão carregados de ‘escatologia’ em sua mais abjeta acepção, sendo, num justificável arroubo de indignação, inapropriadamente
qualificados como“merda”.
Tremenda injustiça contra esta renegada substância que, embora expulsa
do organismo, apenas cumpre com presteza sua função durante o ato fisiológico,
consolidando numa homogênea e inteiriça massa sólida todos os elementos que
nosso corpo dispensou. Ao contrário dos programas de TV que
acarretam consequências sociais, psicológicas e culturais perniciosas, deles
nada se aproveitando, a merda, tratada sanitariamente, é inócua, podendo até
ser utilizada com insumo.
Sabe a coitada que não é benquista. Então, vai-se
embora triste, rejeitada, órfã, descarga abaixo, sem protestar, seguindo seu
triste caminho que a afasta o mais distante possível da fofa e afetuosa bunda
da qual se apartou. Passa a integrar, assustada, uma massa indistinta a ser
levada a destino incerto, até perder totalmente sua identidade, suas
características originais e os elementos herdados de quem a gerou. Morre sem
deixar saudades, embora os constituintes orgânicos permaneçam assombrando
nossa civilização, ameaçadas por crescentes montanhas de bosta, anonimamente
produzida, dia após dia.
Injustiça! Isso retrata a ignorância com que nossa
sociedade hipócrita trata da questão. A merda e o lixo orgânico têm
fundamental importância como adubo natural, o humus. Substituem com
muito mais vantagem os adubos químicos no provimento dos nutrientes necessários
para as plantas. Muita comida que chega à nossa mesa deve-se à ‘merda
reciclada’ que ajudou a fornecer os nutrientes às lavouras. E nunca ninguém
reclamou que os legumes e as frutas viessem com gosto de merda. Se, ao invés de
consumirmos produtos tratados com adubos químicos que causam sérios problemas
de intoxicação e envenenamento, usássemos só produtos orgânicos, tratados com a
legítima bosta, nossa saúde melhoraria. Interessante que os produtos tratados
com bosta ficam, nos supermercados chiques, expostos em prateleiras especiais e
são mais caros do que os demais. Prova de que a merda é um insumo nobre.
Não bastasse isso tudo, cagar é um ato cultural.
Quantos livros não foram devorados enquanto defecamos? Muitos intelectuais,
assentados no aconchego de uma confortável privada, estendem ao máximo, sem
culpa, esses extraordinários momentos culturais que ensejam a reflexão e
estimulam a imaginação. Quem sabe algumas das grandes invenções de utensílios
de que hoje fazemos uso ou algumas das grandes obras da literatura mundial, não
tiveram sua origem e sua concepção no decorrer de uma boa cagada.
Boa parte de nossa vida é passada nessa atividade,
incluindo seus complementos (descer as calças, esperar o produto dignar-se a
sair, limpar o rabo e lavar as mãos). Ao que presumo, dedicamos, numa
estimativa conservadora, uns 20 minutos ao dia para cumprir esse ritual, o que
representa cerca de 1,3% do nosso dia. Isso, para alguém que vive 75 anos, dá
cumulativamente quase um ano de vida. Para quem costuma ir duas vezes ao dia, o
tempo de castigar a porcelana chega a dois anos! Possivelmente mais do que
Proust dedicou (soltando o barro?) para escrever os sete volumes de Em
Busca do Tempo Perdido, em crise existencial, imaginando o tempo perdido
que poderia estar dedicando a coisas úteis, ao invés de ficar sentado no trono
fazendo merda.
Já escutei dizer em algum lugar que uma vida
saudável começa com o bom funcionamento do intestino. Para tanto, dá-lhe fibra,
semente de linhaça, bagaço de laranja, farelo de trigo, ameixa seca, semente de
mamão, coalhada fresca e bastante água.
2 comentários:
bom, muito bom! excelente!! hahaha
Fantástico Ahahha muito bom xD
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