SILÊNCIO DOS CULPADOS
De olhos
fechados, sentado no banco da praça, tento buscar um lugar longínquo para repousar
a felicidade fugaz que inesperadamente em mim aportou. Concentrado, procuro
invocar o lago azul que, extraído de uma tela de Monet ou de alguma clareira
interior, porventura exista entre os arquétipos ali assentados desde meus ancestrais.
Tento resgatar
sons primitivos perdidos pela civilização que apôs sua marca sonora industrial
estridente em nosso cotidiano voraz e bizarro. Talvez num plano mais profundo
do meu ser, possa recuperar apriorísticos paradigmas e esquecidos sons
angélicos ou evangélicos de harpas celestiais.
Abruptamente, um
clamor vulcânico provindo das profundezas do inferno brada arrebatador:
“ATENÇÃO, ESTE
VEÍCULO ESTÁ SENDO ROUBADO E É MONITORADO PELA CAR SYSTEM”.
Sábias palavras
que vaticinaram o martírio anunciado por megafones, alto falantes e toneladas
de decibéis que crescem na velocidade da tecnologia eletrônica de áudio, da
estupidez amplificada e da ausência de normas e de costumes não invasivos.
Ao lado da moto
que anuncia histriônica estar sendo roubada, pessoas passam indiferentes como
se lá não houvesse mais do que um mendigo escalpelado ou um cadáver em
decomposição. Todos cúmplices, impotentes, surdos e silenciosos do barulho que
desaba desagregador, paquidérmico.
Chamado a
responder aos contínuos brados de alarmes falsos, sou sequestrado
irreversivelmente do meu interior protetor. O tranquilo e bucólico lago azul
foi varrido pelo tsunami cataclísmico que o extraiu permanentemente da agreste
paisagem urbana e do imaginário corrompido do homem robotizado.
Meus ouvidos
tornaram-se reféns indefesos de curaus, morangos de Atibaia, bancários
arregimentados, sem-teto desalojados, professores espoliados, ciclistas
atropelados, maconheiros encarcerados, afrodescendentes discriminados, pastores endemoniados, pregadores exaltados, torcedores
alucinados, motoqueiros turbinados, oradores encolerizados. São ambulâncias, bombeiros,
britadeiras, bate-estacas, celulares, aspiradores,
aviões, rojões, raves. Todos concorrem para adentrar pelo gargalo estreito da
minha cavidade auricular, desprovida de filtro, para atingir brutalmente a
delicada membrana timpânica que, em silêncio, só implora uma nota dissonante de
Satie.
O espaço sonoro
gratuito foi loteado. O silêncio original foi estuprado por funkeiros e rappers
tresloucados que, com seus alto falantes e sub woofers, requisitam o monopólio
das ondas sonoras, embrutecendo nossa sensibilidade com a sua falta de,
desconstruída silenciosamente em gerações de opressão e marginalização social.
O pancadão dominou as periferias e à exclusão social seguiu-se a exclusão do
sossego.
O silêncio
tornou-se um conceito idílico, abstrato, surreal, inalcançável na superfície
deste esfacelado e estuprado planeta.
A natureza, em
sua sapiência, criara o fundo musical básico e delicado para nos acolher em
seus domínios com ondas batendo, ventos sibilando, pingos gotejando, grilos
trilando, pássaros gorjeando. A insatisfação e a arrogância do homem fizeram-no
impor sua própria trilha sonora, amplificando os decibéis de sua insensatez até
os píncaros da sua própria suportabilidade, em detrimento do seu olvidado bem estar.
Milênios de escabrosas práticas anticivilizatórias levaram-nos à mais absoluta
barbárie estereofônica.
A pureza sonora
foi irremediavelmente vilipendiada por hordas de hunos, hackers, hitlers,
hulks, hooligans e hardcores. Homens, enfim.
(adaptação de crônica
publicada originalmente no livro
“O QUE DE MIM SOU EU”)
Um comentário:
Considere-se feliz, pois ainda sente algo e tem vez, tem coragem de gritar o que vê, raciocina e descreve tenazmente sua indignação.Ai de mim e quantos iguais,já silenciados no horror desta geração parida e cozida numa caldeira do diabo. Perdemos a sensibilidade , a voz e aguardamos ansiosos por uma grande e definitiva explosão de nossos congelados sonhos de ser e estar num planeta minimamente humano.
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