quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O SILÊNCIO DOS CULPADOS





 
SILÊNCIO DOS CULPADOS
 
De olhos fechados, sentado no banco da praça, tento buscar um lugar longínquo para repousar a felicidade fugaz que inesperadamente em mim aportou. Concentrado, procuro invocar o lago azul que, extraído de uma tela de Monet ou de alguma clareira interior, porventura exista entre os arquétipos ali assentados desde meus ancestrais.
 
Tento resgatar sons primitivos perdidos pela civilização que apôs sua marca sonora industrial estridente em nosso cotidiano voraz e bizarro. Talvez num plano mais profundo do meu ser, possa recuperar apriorísticos paradigmas e esquecidos sons angélicos ou evangélicos de harpas celestiais.
 
Abruptamente, um clamor vulcânico provindo das profundezas do inferno brada arrebatador:
 
“ATENÇÃO, ESTE VEÍCULO ESTÁ SENDO ROUBADO E É MONITORADO PELA CAR SYSTEM”.
 
Sábias palavras que vaticinaram o martírio anunciado por megafones, alto falantes e toneladas de decibéis que crescem na velocidade da tecnologia eletrônica de áudio, da estupidez amplificada e da ausência de normas e de costumes não invasivos.
 
Ao lado da moto que anuncia histriônica estar sendo roubada, pessoas passam indiferentes como se lá não houvesse mais do que um mendigo escalpelado ou um cadáver em decomposição. Todos cúmplices, impotentes, surdos e silenciosos do barulho que desaba desagregador, paquidérmico.
 
Chamado a responder aos contínuos brados de alarmes falsos, sou sequestrado irreversivelmente do meu interior protetor. O tranquilo e bucólico lago azul foi varrido pelo tsunami cataclísmico que o extraiu permanentemente da agreste paisagem urbana e do imaginário corrompido do homem robotizado.
 
Meus ouvidos tornaram-se reféns indefesos de curaus, morangos de Atibaia, bancários arregimentados, sem-teto desalojados, professores espoliados, ciclistas atropelados, maconheiros encarcerados, afrodescendentes discriminados,  pastores endemoniados, pregadores exaltados, torcedores alucinados, motoqueiros turbinados, oradores encolerizados. São ambulâncias, bombeiros, britadeiras, bate-estacas, celulares,  aspiradores, aviões, rojões, raves. Todos concorrem para adentrar pelo gargalo estreito da minha cavidade auricular, desprovida de filtro, para atingir brutalmente a delicada membrana timpânica que, em silêncio, só implora uma nota dissonante de Satie.
 
O espaço sonoro gratuito foi loteado. O silêncio original foi estuprado por funkeiros e rappers tresloucados que, com seus alto falantes e sub woofers, requisitam o monopólio das ondas sonoras, embrutecendo nossa sensibilidade com a sua falta de, desconstruída silenciosamente em gerações de opressão e marginalização social. O pancadão dominou as periferias e à exclusão social seguiu-se a exclusão do sossego.
 
O silêncio tornou-se um conceito idílico, abstrato, surreal, inalcançável na superfície deste esfacelado e estuprado planeta.
 
A natureza, em sua sapiência, criara o fundo musical básico e delicado para nos acolher em seus domínios com ondas batendo, ventos sibilando, pingos gotejando, grilos trilando, pássaros gorjeando. A insatisfação e a arrogância do homem fizeram-no impor sua própria trilha sonora, amplificando os decibéis de sua insensatez até os píncaros da sua própria suportabilidade, em detrimento do seu olvidado bem estar. Milênios de escabrosas práticas anticivilizatórias levaram-nos à mais absoluta barbárie estereofônica.
 
A pureza sonora foi irremediavelmente vilipendiada por hordas de hunos, hackers, hitlers, hulks, hooligans e hardcores. Homens, enfim.



(adaptação de crônica publicada originalmente no livro
 “O QUE DE MIM SOU EU”)

 


 
 

Um comentário:

Radeir disse...

Considere-se feliz, pois ainda sente algo e tem vez, tem coragem de gritar o que vê, raciocina e descreve tenazmente sua indignação.Ai de mim e quantos iguais,já silenciados no horror desta geração parida e cozida numa caldeira do diabo. Perdemos a sensibilidade , a voz e aguardamos ansiosos por uma grande e definitiva explosão de nossos congelados sonhos de ser e estar num planeta minimamente humano.