segunda-feira, 3 de junho de 2013

SILÊNCIO DOS CULPADOS

O murmurar conspirativo das folhas fustigadas pelo intrépido vento evoca a possibilidade assustadoramente se­dutora de perceber-se só, num mundo em processo acelerado de despovoamento, como acena o filme Fim dos Tempos, de M. Night Shyamalan.

A visão cósmica de um cenário desprovido do homo ta­garelus com sua peculiar pessoalidade matraqueadora, vulgar, invasiva e aborrecida, surge dramaticamente libertadora, apai­xonante.


Estar sozinho, qual partícula microscópica esquecida num canto galáctico, em meio a cometas e nebulosas interes­telares, assusta menos que fascina pela perspectiva de resgatar a primitiva paz ante-civilizatória perdida nos descaminhos da involutiva evolução humana a que a pobre Terra, desterrada, submete-se. Calada.


Tais imagens cósmicas e áridas do deserto apocalíptico são interrompidas pelo repentino voo de pássaros a se refugiar nas soberbas árvores que se arvoram em expandir sua copa para o alto e reabilitam a remanescente parcela bela e sã da vida terrena com seu arbóreo orgulho, a quase poder das nuvens arrancar, com seus galhos altivos, a alva irrealidade etérea. Ou, talvez, refugiarem-se desesperadamente do caldo efervescente e deletério que, ameaçador, rodeia suas raízes, subindo tão alto como se pudessem se desvencilhar da se­mente que as pariu, naquele ambiente degenerado e promís­cuo do solo. Como se tentassem, desprendendo-se de suas renegadas origens, atingir o céu redentor.


De olhos fechados, sentado no banco da praça, fazen­do mentalmente a posição de lótus, tento buscar um lugar longínquo para repousar a felicidade fugaz que inesperada­mente em mim aportou. Concentrado, procuro invocar o lago azul que, extraído de uma tela de Monet ou de alguma clareira interior, porventura exista entre os arquétipos ali assentados desde meus ancestrais.

Tento resgatar sons primitivos perdidos pela civilização que apôs sua marca sonora industrial estridente em nosso co­tidiano voraz e bizarro.


Talvez num plano mais profundo do meu ser, possa re­cuperar apriorísticos paradigmas e esquecidos sons angélicos ou evangélicos de harpas celestiais.


Abruptamente, um clamor vulcânico provindo das pro­fundezas do inferno brada arrebatador:
“Atenção, este veículo está sendo roubado e é monito­rado pela Car System”.


Espirrado de um ponto situado entre picos gelados do Tibete, paraísos idílicos e inóspitas paisagens lunares, deságuo no desaguado chafariz central da Praça da República, no co­ração infartado de São Paulo. Vejo-me sentado sobre cocôs de pombo, ao lado de onde deveria estar uma célebre estátua, surrupiada que foi, sem alarme e sem alarde, por moradores de rua e usuários de crack.


“Olha aí, olha aí freguesia, pamonhas fresquinhas, pa­monhas caseiras, é o puro creme do milho verde. Pamonhas! Pamonhas! Pamonhas!”


Sábias palavras que vaticinaram o martírio anunciado por megafones, alto falantes e toneladas de decibéis que cres­cem na velocidade da tecnologia eletrônica de áudio, da estu­pidez amplificada e da ausência de normas e de costumes não invasivos.

Ao lado da moto que anuncia histriônica e policialesca a todos, num raio de meio quilômetro, estar sendo roubada, pessoas passam indiferentes como se lá não houvesse mais do que um mendigo escalpelado ou um cadáver em decomposi­ção. Todos cúmplices, pamonhas, impotentes, surdos e silen­ciosos do barulho que desaba desagregador, paquidérmico.


Chamado a responder aos contínuos brados de alarmes falsos, sou sequestrado irreversivelmente do meu interior pro­tetor. O tranquilo e bucólico lago azul foi var­rido pelo tsunami cataclísmico que o extraiu permanentemen­te da agreste paisagem urbana e do imaginário corrompido do homem robotizado.


Meus ouvidos tornaram-se reféns indefesos de curaus, morangos de Atibaia, bancários arregimentados, sem-teto desalojados, professores espoliados, ciclistas atropelados, maconheiros encarcerados, afrodescendentes discriminados, gays empertigados, motoristas desrespeitados, pastores en­demoniados, pregadores exaltados, bêbados descontrolados, torcedores alucinados, vizinhos inadequados, pedreiros mal educados, motoqueiros turbinados, oradores encolerizados. São ambulâncias, sirenes, bombeiros, britadeiras, bate-estacas, baterias, celulares, cachorros, liquidificadores, aspiradores, aviões, rojões, raves. Todos concorrem para adentrar pelo gar­galo estreito da minha cavidade auricular, desprovida de filtro, para atingir brutalmente a delicada membrana timpânica que, em silêncio, só implora uma nota dissonante de Satie.


O espaço sonoro gratuito foi loteado pela freguesia alu­cinada. O silêncio original foi estuprado por bandos desor­deiros. Funkeiros e rappers tresloucados que, com seus alto falantes e sub woofers, requisitam o monopólio das ondas sonoras, embrutecendo nossa sensibilidade com a sua falta de, desconstruída silenciosamente em gerações de opressão e marginalização social. O pancadão dominou as periferias e à exclusão social seguiu-se a exclusão do sossego.


O silêncio tornou-se um conceito idílico, abstrato, sur­real, inalcançável na superfície deste esfacelado e estuprado planeta.


A natureza, em sua sapiência, criara o fundo musical bá­sico e delicado para nos acolher em seus domínios com ondas batendo, ventos sibilando, pingos gotejando, grilos trilando, pássaros gorjeando. A insatisfação e a arrogância do homem fizeram-no impor sua própria trilha sonora, amplificando os decibéis de sua insensatez até os píncaros da sua própria su­portabilidade, em detrimento do seu olvidado bem estar. Milênios de escabrosas práticas anticivilizatórias leva­ram-nos à mais absoluta barbárie estereofônica.
  
Sinal da chegada dos prenunciados tempos shyamala­nianos.

A pureza sonora foi irremediavelmente vilipendiada por hordas de hunos, hackers, hitlers, hulks, hooligans e hardco­res. Homens, enfim.



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