O
murmurar conspirativo das folhas fustigadas pelo intrépido vento evoca a
possibilidade assustadoramente sedutora de perceber-se só, num mundo em
processo acelerado de despovoamento, como acena o filme Fim dos Tempos, de
M. Night Shyamalan.
A visão cósmica de um cenário desprovido do homo tagarelus
com sua peculiar pessoalidade matraqueadora, vulgar, invasiva e aborrecida,
surge dramaticamente libertadora, apaixonante.
Estar sozinho, qual partícula microscópica
esquecida num canto galáctico, em meio a cometas e nebulosas interestelares,
assusta menos que fascina pela perspectiva de resgatar a primitiva paz
ante-civilizatória perdida nos descaminhos da involutiva evolução humana a que
a pobre Terra, desterrada, submete-se. Calada.
Tais imagens cósmicas e áridas do deserto
apocalíptico são interrompidas pelo repentino voo de pássaros a se refugiar nas
soberbas árvores que se arvoram em expandir sua copa para o alto e reabilitam a
remanescente parcela bela e sã da vida terrena com seu arbóreo orgulho, a quase
poder das nuvens arrancar, com seus galhos altivos, a alva irrealidade etérea.
Ou, talvez, refugiarem-se desesperadamente do caldo efervescente e deletério
que, ameaçador, rodeia suas raízes, subindo tão alto como se pudessem se desvencilhar
da semente que as pariu, naquele ambiente degenerado e promíscuo do solo.
Como se tentassem, desprendendo-se de suas renegadas origens, atingir o céu
redentor.
De olhos fechados, sentado no banco da praça, fazendo
mentalmente a posição de lótus, tento buscar um lugar longínquo para repousar a
felicidade fugaz que inesperadamente em mim aportou. Concentrado, procuro
invocar o lago azul que, extraído de uma tela de Monet ou de alguma clareira
interior, porventura exista entre os arquétipos ali assentados desde meus
ancestrais.
Tento resgatar sons primitivos perdidos pela
civilização que apôs sua marca sonora industrial estridente em nosso cotidiano
voraz e bizarro.
Talvez num plano mais profundo do meu ser, possa recuperar
apriorísticos paradigmas e esquecidos sons angélicos ou evangélicos de harpas
celestiais.
Abruptamente, um clamor vulcânico provindo das profundezas
do inferno brada arrebatador:
“Atenção, este veículo está sendo roubado e é
monitorado pela Car System”.
Espirrado de um ponto situado entre picos gelados
do Tibete, paraísos idílicos e inóspitas paisagens lunares, deságuo no
desaguado chafariz central da Praça da República, no coração infartado de São
Paulo. Vejo-me sentado sobre cocôs de pombo, ao lado de onde deveria estar uma
célebre estátua, surrupiada que foi, sem alarme e sem alarde, por moradores de
rua e usuários de crack.
“Olha
aí, olha aí freguesia, pamonhas fresquinhas, pamonhas caseiras, é o puro creme
do milho verde. Pamonhas! Pamonhas! Pamonhas!”
Sábias palavras que vaticinaram o martírio
anunciado por megafones, alto falantes e toneladas de decibéis que crescem na
velocidade da tecnologia eletrônica de áudio, da estupidez amplificada e da
ausência de normas e de costumes não invasivos.
Ao lado da moto que anuncia histriônica e
policialesca a todos, num raio de meio quilômetro, estar sendo roubada, pessoas
passam indiferentes como se lá não houvesse mais do que um mendigo escalpelado
ou um cadáver em decomposição. Todos cúmplices, pamonhas, impotentes, surdos e
silenciosos do barulho que desaba desagregador, paquidérmico.
Chamado a responder aos contínuos brados de alarmes
falsos, sou sequestrado irreversivelmente do meu interior protetor. O
tranquilo e bucólico lago azul foi varrido pelo tsunami cataclísmico que o
extraiu permanentemente da agreste paisagem urbana e do imaginário corrompido
do homem robotizado.
Meus ouvidos tornaram-se reféns indefesos de
curaus, morangos de Atibaia, bancários arregimentados, sem-teto desalojados,
professores espoliados, ciclistas atropelados, maconheiros encarcerados,
afrodescendentes discriminados, gays empertigados, motoristas desrespeitados,
pastores endemoniados, pregadores exaltados, bêbados descontrolados,
torcedores alucinados, vizinhos inadequados, pedreiros mal educados,
motoqueiros turbinados, oradores encolerizados. São ambulâncias, sirenes,
bombeiros, britadeiras, bate-estacas, baterias, celulares, cachorros,
liquidificadores, aspiradores, aviões, rojões, raves. Todos concorrem para
adentrar pelo gargalo estreito da minha cavidade auricular, desprovida de
filtro, para atingir brutalmente a delicada membrana timpânica que, em
silêncio, só implora uma nota dissonante de Satie.
O espaço sonoro gratuito foi loteado pela freguesia
alucinada. O silêncio original foi estuprado por bandos desordeiros.
Funkeiros e rappers tresloucados que, com seus alto falantes e sub woofers,
requisitam o monopólio das ondas sonoras, embrutecendo nossa sensibilidade com
a sua falta de, desconstruída silenciosamente em gerações de opressão e
marginalização social. O pancadão dominou as periferias e à exclusão social
seguiu-se a exclusão do sossego.
O silêncio tornou-se um conceito idílico, abstrato,
surreal, inalcançável na superfície deste esfacelado e estuprado planeta.
A natureza, em sua sapiência, criara o fundo
musical básico e delicado para nos acolher em seus domínios com ondas batendo,
ventos sibilando, pingos gotejando, grilos trilando, pássaros gorjeando. A
insatisfação e a arrogância do homem fizeram-no impor sua própria trilha
sonora, amplificando os decibéis de sua insensatez até os píncaros da sua
própria suportabilidade, em detrimento do seu olvidado bem estar. Milênios de
escabrosas práticas anticivilizatórias levaram-nos à mais absoluta barbárie
estereofônica.
Sinal da chegada dos prenunciados tempos shyamalanianos.
A
pureza sonora foi irremediavelmente vilipendiada por hordas de hunos, hackers,
hitlers, hulks, hooligans e hardcores. Homens, enfim.
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