Horripilantes e cavernosos urros ecoam longamente,
entremeados por ameaçadores clarões branco-cadavéricos que rasgam abruptamente
a negritude de disformes e pesadas nuvens que anunciam ser portadoras de
inimagináveis horrores de um céu desagregado. Parecem proclamar a chegada de um
abominável e destruidor deus da morte.
Morte que se dilui em vida. Água. Aliviando esse assustador
estado de tensão, chega, redentora, a chuva.
Chove o céu seu choro, soro divino. Desabafa, deságua sua
mágoa. Verte seu riacho, água abaixo, pulverizando e distribuindo
indistintamente seu frescor, diligentemente represado, anuviado nas alturas.
Provê com seu opulento aleitamento todo o ser a que, amável,
incansável, oferece o seio flacidamente ereto, placidamente repleto. Farto,
fértil, forte, tenro, terno, eterno, etéreo.
O concorrer das nuvens espreme massas recheadas de umidade,
produzindo uma explosão de pingos que se espalham e tomam uma fatia do espaço,
compondo uma paisagem liquefeita.
Representa muito mais do que uma nova condição de tempo ou
uma determinada categoria meteorológica. Sua chegada delineia um contexto de
melancolia resplandecente. O contraponto do sol, não uma oposição a ele. Afoga
e afaga a claridade abusiva em sua névoa moderadora. Contemporiza o estado de
alegria efusiva do astro flamejante, propondo uma introspecção contemplativa.
Fecundada por seus raios, dá a luz à luz multifacetada em forma de um arco mágico
e colorido a celebrar o anunciado casamento de viúva.
O calor abrasivo que ela atenua, paradoxalmente lhe confere
vida, revertendo para a superfície a mesma água que é por este extraída dos
mares e rios em direção às alturas, e a alimenta, num ciclo infindável que, sem
se renovar, renova a vida do planeta. Um vai e vem interminável e repetitivo,
cuja mera assiduidade proporciona a festa da existência.
Numa afronta às determinações graves da gravidade, o
desmoronamento da colossal massa de água doce dá-se e desce suave, afável,
sorrateiro, homogêneo, esmigalhado. Turbilhões de bilhões em gotas, dócil mas
vigorosamente gotejadas, em dosagens maternais ao solo enfermo e febril,
carente de cuidados. Quase que um carinho.
Misteriosa, obscura, incorpórea, carrega o espírito do
conjunto em sua natureza. Cada pingo transporta um pingo de sua índole. Só
avaliamos suas reais dimensões, forma e grandeza, vendo-a agrupada ao longe,
onde os bilhões rendem-se à sua integralidade unificadora. Vislumbrando-a qual
uma nuvem que o céu oferece ao solo. Imerecida e abnegada bênção contra as
ressecadas torpezas terrenas.
Ao penetrar em seu interior fosco, perdemos essa perspectiva
totalizante. Chovemos por dentro, com ela. Ao sermos engolfados, somos a ela,
efetivamente, apresentados e com sua intimidade passamos a interagir. Tateamos
sua intangível essência, ao sentir sua delicada liquidez resvalar em nossa
pele, aliviando-a de sua rispidez.
A desidratada civilização determina que dela devamos nos
resguardar, presumindo-nos tolamente ameaçados pelo mesmo líquido miraculoso de
que somos feitos e que nos sustenta. O âmago da vida. Ao dela nos apartar,
apartamo-nos de nós mesmos. Do ambiente natural “hostil”, isolamos nosso corpo,
alojando-o em vestes, capas e botinas. Resguardamo-lo sob surreais e esquálidos
artefatos impermeáveis. Seu toque molhado, lambido, ao vencer essa precária
proteção envoltória, em busca de nossa pele, revive-nos a temida animalidade
original, reacendendo perigosos instintos primitivos que desmantelam os fundamentos
de nossa asséptica segurança civilizatória.
Yinizando gentilmente o ar árido, rude e químico, estende
com seu doce pranto um manto protetor sobre o solo carente, ensopando,
empapando e enlameando a terra. Do pó estéril, compõe um rico e nutriente bolo
argiloso. Refaz com sua sobriedade digna e altiva, a vida tênue constantemente
ameaçada pelo cáustico fustigar da irradiação solar. Da externa e eterna ameaça
de deserto, resgata a condição de oásis.
Engravida, com sua feminilidade ativa, a terra tórrida,
encharcando-a, fertilizando-a, preenchendo seus poros com o sêmen da vida. Faz,
do esterco fétido, balsâmico maná. Um carinho às folhas que se fartam e se
regozijam agradecidas, engrandecidas, ensandecidas, saciadas. Úmida e ‘útera’
proteção.
Vindo a ressaca, o mundo pulsa úmido, vívido, lambuzado,
embriagado e entorpecido. E a vida inoculada brota e espoca febrilmente,
exalando um odor inebriante.
Intermitentes e sincopados, os pingos espalham-se e
arriscam, ariscos, sem cerimônia, uma incursão pela cidade estorricada e
embrutecida pelo asfalto. O chão de cinzas, tingem de cinza. Cinza shocking.
Lavam a cidade de suas mazelas incrustadas e encravadas. Curam temporariamente
a urbe de sua urbanidade, brindando-a com o estado campestre de cachoeira.
Gotas que, caídas na couraça impenetrável, impingida ao solo
pelo betume e pelo piche, divisores de águas, correm, escorrem, escorregam, ‘côrregas’,
muitas vezes desesperadas, desamparadas, desesperançadas e frustradas, sem
poder cumprir, a contento, sua vocação redentora ante a artificialidade dos
domínios do homem embrutecido. Chovem no molhado.
Mas sua passagem não deixa de deixar marcantes marcas
estéticas, fazendo refletir e multiplicar faróis, luminárias, spots, neons, num
caleidoscópio que firma o firmamento estrelado no desorientado asfalto. Não
podendo vencer sua rigidez impermeável, orna-o com suas tinturas. Zomba de sua
sisudez. Debocha de sua perenidade arrogante com a fugacidade tempestiva e
insubordinada de sua índole.
Nos vidros, gotículas em filete freneticamente saltitam
travessas, transversas, compondo pinturas móveis, desfocadas, indecifráveis e
oníricas que ressuscitam de nosso inconsciente imagens imaginárias, que a
letargia cotidiana sepultara. Recriam e libertam as alegorias, formando telas
fluidas impressionistas.
Envolvidos, cedemos a seu renitente chamado e entramos em
sintonia com a sinfonia do tamborilar repetitivo, hipnotizante e insistente do
cair de suas lágrimas copiosas, levando-nos a avalizar nossas inférteis chuvas
internas.