Divinos pés.
Apoiados pelo calcanhar. Um sobre o outro. Posição de descanso. Acomodados
sobre uma pequena almofada que lhes retribui a maciez. Deixam-se ali abandonar
como joias raras expostas num trono acolchoado, para serem veneradas. Pérolas!
Repousam eles soberanos, indolentes, indiferentes à própria majestade. Ao
vê-los imponentes, reverencio-os com humildade.
Belos
espécimes de pé, os do minha amada. Não bastasse um, dispõe ela de dois! A
natureza gostou tanto de sua obra que reproduziu outro igual. Ou melhor,
simétrico. Um, reflexo do outro. Companheiros, parceiros indissociáveis,
perfilados lado a lado, combinam-se perfeitamente.
Embora
vizinhos e íntimos, pertencem a distintos membros, clãs com tendências
inconciliáveis. Um de direita, outro de esquerda. Ainda que afeitos e
inseparáveis, jamais conseguem consumar sua união, devendo conformar-se em
permanecer não mais do que bons amigos. Com meias indistintas e seus
correspondentes pés de sapato, ambos com o mesmo número e tamanho, mas cada
qual com seu formato específico a determinar a pessoalidade decorrente de sua
tendência. Ambos convergindo para dentro, como a querer reafirmar seu
inexequível anseio por união.
Não obstante,
um obstáculo se interpõe entre ambos. Um golfo intransponível, um longo vazio,
a apartá-los eternamente. Sete pés de distância os afastam. Tão perto, tão
longe. Uma insólita viagem através do tornozelo, subindo pelas pernas, coxas,
púbis, região glútea, dobrando-se o cabo da Boa Esperança e completando o
périplo com o retorno pelo outro lado. Até encontrar seu pé metade.
Os dedos,
prolongamentos terminais do pé, graciosa e progressivamente crescem em
comprimento e largura, a partir do miudinho mindinho. Cada um deles mantém o
mesmo padrão, com ligeiras variações, de modo a submeterem-se à harmonia e à
perfeição estética do conjunto. A sensação de mudança dá-se apenas pela
modulação do tamanho, um crescendo progressivo, até resultar no ápice do
dedão. Do irretocável e definitivo protótipo, foram pormenorizados os
detalhes. A dedo.
Transposta
livremente para uma partitura, essa graduação resulta numa peça orquestral. O
compositor francês Ravel por certo se inspirou na sequência ascensional
harmônica dos dedos do pé para escrever sua obra máxima, o Bolero, um maravilhoso
exercício de composição que privilegia a dinâmica do crescente. Uma elevação
gradativa que arrebata o ouvinte, não pela variação melódica, mas unicamente
pela mudança paulatina de intensidade sobre o mesmo tema, que se renova e se
agiganta até o fortíssimo ‘gran finale’, auge representado pelo tronchudo
dedão.
A proteção da
meia não lhes rouba a graça. Antes, dá-lhes uma graça e meia. Esta modesta e
subestimada peça do vestuário consegue realçar as amenas e sublimes formas dos
pés, homogeneizando o padrão da cor e da textura. Agasalha-os, abrigando e
preservando sua beleza dócil para que ela não se desgaste com a excessiva
exposição às intempéries mundanas e aos olhos gordos.
O sapato e a
bota, ao contrário, acessórios pesados, enformam, sufocam e comprimem seu
delicado conteúdo, retirando parte de seu intrínseco encanto. Inserem em volta
do pé uma membrana compacta de couro, plástico, borracha ou material sintético
em substituição à sedosa pele que o reveste. Mas não se podem culpar os
calçados. Desempenham eles a árdua função de blindar a fragilidade do pé contra
a agressão áspera do solo irregular e pedregoso e da concretude e imundície
das calçadas. São os parrudos guarda-costas armados do pé. Que deles não se
espere mais.
Já os
chinelos, mais leves e macios, feitos para caminhar dentro de casa, são um meio
termo entre o acolhimento da meia e a rudeza do sapato. Sua função é menos a de
proteger, mais a de acomodar os pés cansados. Deixa-os à vontade, para que
possam exibir todo o esplendor de seu charme.
Quando
libertos de qualquer proteção artificial é que os pés se afirmam de fato e de
direito e podem manifestar-se em toda sua plenitude. Permitem-se-lhes assim
apreciar a terna umidade do orvalho da grama verde, transmitindo para todo o
corpo a agradabilíssima sensação dessa revigorante energia vital.
Sentindo o
frescor da areia fofa, os pés descalços também se realizam, descobrem sua
verdadeira natureza. A areia fina, ao recobri-los, convida-os a se entregarem.
Quando, enfim, a ela se rendem, parecem abdicar de sua restrita e onerosa incumbência
funcional para serem apossados pelo universo.
Tais
sensações rejuvenescedoras são o bálsamo que compensa seu angustiante
cotidiano. Durante sete dias por semana, prestam-se os pés servilmente a suster
todo o peso do corpo por horas a fio, conduzindo-o para os lugares que
determinamos sem os consultar, sem pagar pedágio. Brincar, pular, correr,
guiar, bailar. Podemos até dispensar o carro e com eles fazer as coisas
literalmente... a pé. Se caminhar, correr ou andar de bike são excelentes atividades
físicas, o crédito é todo do penalizado pé.
Após horas de
requisições diárias, uns segundos de relaxamento, ao chegar da noite, é o
pouco que lhes é concedido em troca.
Deus criou
cada um deles e disse: “Este será o pé. Que bela obra!”, orgulhoso de sua
própria criação. E o pé ficou sendo pé. Cada um, simplesmente um pé. O pé
básico. Como deve ele ser. Nada de mais. Apenas pé. Ao pé da letra.
Como os da
Gata Borralheira, da lenda que glorifica o pé simples que conduziu a sua
humilde dona pelo caminho da felicidade. Ainda que trabalhando duro, preservou
Cinderela, sábia mas desinteressadamente, a graciosidade de seus pés, de tal
sorte que o sapatinho de cristal amoldou-se-lhe como a uma luva, subjugando o
enlouquecido príncipe que, após percorrer e vasculhar desesperado cada pé do
reino, encontrou afinal o pé definitivo que lhe deu felicidade eterna.
Ao pé basta
ser o que ele é. Belo em sua cândida singeleza minimalista. Até no nome é
modesto. Pé. Não poderia ser mais curto. Dezenas deles enfileirados, pé ante
pé, não completam sequer uma linha de texto. Duas míseras letras bastam-lhe.
Outras partes do corpo, como o esternocleidomastoideo, nem com vinte e duas
conseguem dizer para que vieram ao mundo.
Esmaltes,
tatuagens e sandálias incrementadas são absolutamente dispensáveis pois tentam
ridiculamente aperfeiçoar o que a natureza já fez perfeito.
Impossível
apreciar um lindo pé descalço sem sentir um impulso irresistível de mordê-lo
qual um tenro, aromático e suculento peito de frango grelhado. Mas essa ave
soberba não é para ser comida nem pode ser engaiolada. Deve estar liberta para
encantar o mundo. E colocá-lo a seus pés.
O valor
intrínseco do pé não pode ser apropriado. De sua exuberância é impossível tomar
pé. Esta parte nobre do corpo deve sempre permanecer dentro do conjunto que o
orna para exalar sua grandeza. Não seu odor.
Ao
recostar-se no pé do meu amor, meu pé opaco, frio, sem graça e carente, fica
mais vívido, acolhido, aquecido, feliz, por ter encontrado o verdadeiro par que
o complementa. Ao lado dele, reencontra sua genuína e acolhedora morada,
perdida após décadas de agruras e requisições.
Resta apenas
observar fascinado, seu delicado e delicioso movimento de abrir e fechar os
dedos, provocando pequenas, carnudas e saborosas ondulações na pele.
Alongar-se, contrair-se, insinuando-se. Como uma mata hari inalcançável, faz
sua pérfida dança de requebrar. E o mundo lhe faz reverência ficando sob o
jugo de sua planta.
Pétalas.
Acalma-me massageá-los sentindo sua pele sedosa. Ao fazê-lo massageio meus
dedos também. Cada ponto apalpado reverte o reconfortante ‘do in’ para as
trilhões de células do meu corpo envolvido.
Beijo-os com
amor, ao me deitar com eles.
Despedem-se.
Dão-me paz. Pés
Extraído do livro O QUE DE MIM SOU EU