domingo, 25 de janeiro de 2015

O AVIÃOZINHO


Essa crônica a jato é para homenagear o aviãozinho do ‘plano de voo’ que apresenta esquematicamente, durante as maçantes e intermináveis viagens aéreas, um rosário de informações como velocidade, altitude, distâncias etc.

Doce alegria acompanhar as peripécias e travessuras da­quele tosco modelinho, que protagoniza um enredo arrastado, em meio a um cenário de mapas e números. Entretém-me por horas, mostrando, orgulhoso, suas conquistas e façanhas.

O aviãozinho procura disfarçar sua tristeza ante a in­diferença solene dos passageiros, principalmente a de crianças desinfantilizadas, sedentas por ingressar rápido no mundo de responsabilidades, hipocrisia, corrupção e bebidas.

Desdobra-se a navezinha em cumprir seu papel de impressionar os espectadores sobre quantas milhas percor­reu, quão alto consegue subir e quanto frio consegue enfren­tar.

Mas imagino que a frieza atroz que o martiriza provém do desprezo das pessoas que, por não saberem mais brincar, não dão a devida atenção ao irrequieto entusiasmo infantil daquele “patético” figurante, largado à infindável chatice de dados aeronáuticos.

Encena seu papel briosamente, como o de um palhaço sem graça que dá toda sua energia tentando er­guer o ânimo da desatenta plateia, entre dois números de ma­labarismo. O audaz aviãozinho não se entrega ao desalento.

Quadro a quadro, fico esperando ansioso rolar a sequência completa de informações inúteis para vê-lo ressurgir altaneiro e peralta na tela anunciando quantos quilômetros conseguiu galgar na rodada, reduzindo bravamente o incômodo pela penosa espera.

O coitadinho nunca deixa a bola cair, sempre atualizan­do os dados, até o aguardado fim da viagem, quando a apre­sentação da peça chega melancólica ao seu desfecho.

Todos abandonam, sem saudade, seus assentos na plateia e deixam a adormecida aeronave aos atropelos, de volta ao seu habi­tat, no solo.

As cortinas nem chegam a se fechar. Sem que se aperceba, a projeção simplesmente se interrompe. Ninguém pede bis. Fico ali, absorto, esperando em vão meu ídolo voltar ao palco para agradecer. As luzes da tela abruptamente se apagam e o palhacinho é ar­rancado de cena.

A expressão ‘plano de voo’, conferida ao ‘enredo’ apresentado durante a viagem parece querer suprimir a candura intrínseca àquele objetinho inocente, inserindo-o no universo gráfico corporativo e otimizador dos executivos.

Ao invés de um plano cartesiano contendo uma de­monstração cartográfica elaborada por experts em aviação comercial, vejo na projeção apenas um aviãozinho bonitinho galgar solto o espaço.

Com desenvoltura, lá vai ele, altivo, atraves­sando a floresta amazônica com o mesmo ímpeto com que cruza oceanos, desertos, cordilheiras, planícies, civilizações. Imbatível explorador, dentro de um universo mágico, rumo ao ponto de chegada, talvez a Terra do Nunca.

Se os administradores das companhias de aviação soubessem dessa concepção ‘gaiata’ de imediato seria o aviãozinho com toda sua parafernália proscrito da tela e substituído por grá­ficos de desempenho de commoditties, diagramas de evolução das bolsas asiáticas ou por uma figura mais inumana dotada de merchandising aéreo, sendo remodelado por um design arrojado, retilíneo e futurista.

Até lá, enquanto concepções inocentes subsistem à margem do sistema, terei direito de conservar, a dez mil metros do chão, minha imaginação nas nuvens.

A cada girada, novos números: velocidade, altitude, temperatura, distância, horário, quilômetros, milhas, pés, graus Celsius, Farenheit e um punhado aleatório de cidades de relevâncias distintas que parecem estar umas sobre as ou­tras num mapa rudimentar e impreciso, onde Belo Horizonte fica ao lado de Aracaju e Miami é subúrbio de Nova York.

Quem vê aquela figurinha dócil, mal consegue rela­cioná-lo ao monstro metálico dotado de avançados recursos tecnológicos, em que respeitosamente adentráramos, intimidados ante sua imponência técnica e cujo interior inóspito e claustrofóbico mostrara um movimento frenético de pessoas abrindo desa­jeitadamente compartimentos, guardando febrilmente valises e trocando sorrisos forçados de apreensão e cumplicidade.

Passageiros apressados e sisudos, querendo cumprir suas inexoráveis jornadas para dar célere continuidade a suas vidas insípidas, fechar negócios oblíquos, transportar muam­bas, visitar lojas de grifes, postar selfies com cé­lebres monumentos ao fundo, visitar corredores de museus cujas valiosas obras de arte permanecerão no esque­cimento. Um vai e vem repetitivo e improfícuo.

E o aviãozinho da tela alça voo sobrepondo-se a esse sem sentido mundo dos homens a que tenazmente serve. 
  


Texto extraído do livro “O QUE DE MIM SOU EU”


Um comentário:

Anônimo disse...

O problema dos que fazem o estrago e não são cobrados no futuro é porque no presente eles são onipotentes pela força ou pela ignorância.
helio