Essa crônica a
jato é para homenagear o aviãozinho do ‘plano de voo’ que apresenta
esquematicamente, durante as maçantes e intermináveis viagens aéreas, um
rosário de informações como velocidade, altitude, distâncias etc.
Doce alegria
acompanhar as peripécias e travessuras daquele tosco modelinho, que
protagoniza um enredo arrastado, em meio a um cenário de mapas e números.
Entretém-me por horas, mostrando, orgulhoso, suas conquistas e façanhas.
O aviãozinho
procura disfarçar sua tristeza ante a indiferença solene dos passageiros,
principalmente a de crianças desinfantilizadas, sedentas por ingressar rápido
no mundo de responsabilidades, hipocrisia, corrupção e bebidas.
Desdobra-se a
navezinha em cumprir seu papel de impressionar os espectadores sobre quantas
milhas percorreu, quão alto consegue subir e quanto frio consegue enfrentar.
Mas imagino que
a frieza atroz que o martiriza provém do desprezo das pessoas que, por não
saberem mais brincar, não dão a devida atenção ao irrequieto entusiasmo
infantil daquele “patético” figurante, largado à infindável chatice de dados
aeronáuticos.
Encena seu
papel briosamente, como o de um palhaço sem graça que dá toda sua energia
tentando erguer o ânimo da desatenta plateia, entre dois números de malabarismo.
O audaz aviãozinho não se entrega ao desalento.
Quadro a
quadro, fico esperando ansioso rolar a sequência completa de informações
inúteis para vê-lo ressurgir altaneiro e peralta na tela anunciando quantos
quilômetros conseguiu galgar na rodada, reduzindo bravamente o incômodo pela
penosa espera.
O coitadinho
nunca deixa a bola cair, sempre atualizando os dados, até o aguardado fim da
viagem, quando a apresentação da peça chega melancólica ao seu desfecho.
Todos
abandonam, sem saudade, seus assentos na plateia e deixam a adormecida aeronave
aos atropelos, de volta ao seu habitat, no solo.
As cortinas nem
chegam a se fechar. Sem que se aperceba, a projeção simplesmente se interrompe.
Ninguém pede bis. Fico ali, absorto, esperando em vão meu ídolo voltar ao palco
para agradecer. As luzes da tela abruptamente se apagam e o palhacinho é arrancado
de cena.
A expressão
‘plano de voo’, conferida ao ‘enredo’ apresentado durante a viagem parece
querer suprimir a candura intrínseca àquele objetinho inocente, inserindo-o no
universo gráfico corporativo e otimizador dos executivos.
Ao invés de um
plano cartesiano contendo uma demonstração cartográfica elaborada por experts
em aviação comercial, vejo na projeção apenas um aviãozinho bonitinho galgar
solto o espaço.
Com
desenvoltura, lá vai ele, altivo, atravessando a floresta amazônica com o
mesmo ímpeto com que cruza oceanos, desertos, cordilheiras, planícies,
civilizações. Imbatível explorador, dentro de um universo mágico, rumo ao ponto
de chegada, talvez a Terra do Nunca.
Se os
administradores das companhias de aviação soubessem dessa concepção ‘gaiata’ de
imediato seria o aviãozinho com toda sua parafernália proscrito da tela e
substituído por gráficos de desempenho de commoditties, diagramas de evolução
das bolsas asiáticas ou por uma figura mais inumana dotada de merchandising
aéreo, sendo remodelado por um design arrojado, retilíneo e futurista.
Até lá,
enquanto concepções inocentes subsistem à margem do sistema, terei direito de
conservar, a dez mil metros do chão, minha imaginação nas nuvens.
A cada girada,
novos números: velocidade, altitude, temperatura, distância, horário,
quilômetros, milhas, pés, graus Celsius, Farenheit e um punhado aleatório de
cidades de relevâncias distintas que parecem estar umas sobre as outras num mapa
rudimentar e impreciso, onde Belo Horizonte fica ao lado de Aracaju e Miami é
subúrbio de Nova York.
Quem vê aquela
figurinha dócil, mal consegue relacioná-lo ao monstro metálico dotado de
avançados recursos tecnológicos, em que respeitosamente adentráramos,
intimidados ante sua imponência técnica e cujo interior inóspito e
claustrofóbico mostrara um movimento frenético de pessoas abrindo desajeitadamente
compartimentos, guardando febrilmente valises e trocando sorrisos forçados de
apreensão e cumplicidade.
Passageiros
apressados e sisudos, querendo cumprir suas inexoráveis jornadas para dar
célere continuidade a suas vidas insípidas, fechar negócios oblíquos,
transportar muambas, visitar lojas de grifes, postar selfies com célebres
monumentos ao fundo, visitar corredores de museus cujas valiosas obras de arte
permanecerão no esquecimento. Um vai e vem repetitivo e improfícuo.
E o aviãozinho
da tela alça voo sobrepondo-se a esse sem sentido mundo dos homens a que
tenazmente serve.
Texto extraído do livro “O QUE DE MIM
SOU EU”
Um comentário:
O problema dos que fazem o estrago e não são cobrados no futuro é porque no presente eles são onipotentes pela força ou pela ignorância.
helio
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