Devia ter eu uns sete anos, talvez
oito. Estava deitado no banco detrás de um DKW. Ou podia ser um Simca. No banco
da frente, conversando conversas de adultos, às quais eu não prestava a mínima
atenção, estavam meu primo mais velho e meu pai. Ou, quem sabe, meu tio e meu
avô. Isso não é importante. O horário? Umas nove e pouco da manhã. No máximo,
dez. Era sábado – isso sim é importante! – e o dia estava ensolarado com um céu
absurdamente azul. Isso também é importante! Estávamos em junho, suposição que
hoje faço, pela circunstância de o céu revelar alguns alegres balões juninos
que corriam ao longe, os quais podiam ser avistados mesmo com o carro em
movimento. Como se eles nos acompanhassem.
Estava radiante de alegria pois, sendo
sábado, não haveria aula. Nada de lições e tarefas chatas. E eu teria um dia
todinho de brincadeiras e diversão pela frente. E amanhã, domingo, outro dia
sem obrigações e sem horário para acordar.
O carro dirigia-se de volta à minha
casa. Não me recordo de onde eu vinha ou por que saíra. Mas isso também não
tem a menor importância. Sei apenas que estava tomado pela ansiedade da volta,
pois minha turma de amigos estaria certamente batendo uma bola na rua, em mais
uma infalível pelada homérica de sábado de manhã. Mal podia conter as batidas
de meu coração ansioso, pois ele sabia que, em questão de minutos, eu me
uniria a eles nessa brincadeira.
Pronto! Este era o quadro completo.
Só isso. Acabou. E daí? Daí o quê? Nada de especial, de anormal, de notável, de
formidável ou de fantástico. Com exceção de um detalhe. Esses minutos, esses
poucos minutos de uma manhã de sábado, foram os mais felizes da minha vida.
Jamais os esqueci e jamais consegui
reviver sensação de tamanha felicidade. No decorrer de minha vida, passei por
tantas situações de comemoração, alegria, brincadeiras, divertimento, sexo,
viagens, conquistas, vitórias, encontros. Ocasiões ricas em elementos factuais
significativos que, em tese, teriam tudo para se notabilizar e ser rememoradas.
Não me recordo de nenhuma, agora. Nenhuma ficou tão fortemente marcada. Nenhuma
possibilitou sentimento tão esfuziante e maravilhoso que ainda não sou tão
capaz de descrever como sou de rememorar. Tudo o que as palavras conseguem
fazer é resvalar nas bordas, distantes do epicentro da emoção. Era como se eu
estivesse vivenciando uma magnífica festa em meu interior.
Aquela composição peculiar de
elementos tão significativos ocorridos ao mesmo tempo – o sábado, o futebol, o
céu azul da manhã, os balões – foi capaz de me trazer um estado de plenitude,
entusiasmo, prazer de viver, como nunca acontecera antes. Tampouco depois. Algo
que, mais tarde, eu viria a rotular, na inexistência de conceito mais
abrangente, de ‘felicidade’. Mas que na hora me pareceu apenas bom. Bom demais!
Como deveria ser a vida sempre.
Dada a recorrência com que a
lembrança desse dia surgiu em minha vida futura, procurei, anos mais tarde,
adulto, formalizar um conceito ou conferir uma descrição mais precisa ao que
em mim teria ocorrido naqueles inesquecíveis momentos de êxtase. A mais próxima
que se sobressaiu tive de emprestar um singelo samba de Paulinho da Viola: ‘aquele
azul não era do céu nem era do mar. Foi um rio que passou em minha vida. E meu
coração se deixou levar’.
É possível que, em outras ocasiões,
esse mesmo conjunto de fatores, ou outro que pudesse ser tão bom quanto, tivesse
voltado a acontecer. Mas a sensação não mais se repetiu. Talvez das outras
vezes tivesse faltado uma disponibilidade interior. Ou eu não estivesse tão
sintonizado com as energias positivas do universo. Não sei.
Naquele instante, eu não poderia
sequer imaginar que tais momentos, aparentemente tão banais e corriqueiros, desprovidos
da aura de significância que algum acontecimento expressivo, digno de ser
relembrado, pudesse lhe conferir, fossem ficar tão profundamente incrustados
em minha memória e em minha alma. Nem me preocupava com isso. Ou com a ausência
disso. Não havia divagações, conjecturas, elucubrações. Apenas um coração
infantil palpitando forte, tomado por um sentimento sublime. Arrastado por um
rio interno que corria caudaloso. Ali estava eu, sendo feliz. Só.
A divindade coroando a simplicidade.
Talvez se algum arcanjo, conhecedor dos caminhos que meu destino tomaria,
assaltado por um impulso incontrolável, tivesse descido do céu para comigo
compartilhar, ao pé do ouvido, sobre a importância que aquele momento teria em
minha trajetória de vida, possivelmente eu, recobrado do susto de me deparar
com um ente divino, ao receber a inesperada revelação, ficasse atônito ante
aquela observação surpreendente e sem nexo. Eu descambaria do paraíso em que me
encontrava para o mundo aborrecido das definições, das explicações, das
justificativas, das contextualizações. Dos adultos, enfim. E meu coração, uma
vez interrompido o suprimento do bálsamo encantado que o alimentava,
murcharia, subtraído daquela preciosa sensação.
A felicidade talvez seja apenas um
vazio. Como a chama que reluz originalmente em nosso quarto interior. E nos é
dada como uma bênção, um dom, ao ingressarmos nesse mundo. Quanto mais enchemos
o ambiente de coisas, menos espaço tem ela para propagar seu brilho. E ficamos
a vida inteira tentando recuperar a tal da felicidade que trazíamos como item
de fábrica. Procurando onde a encontrar em meio aos entulhos que passaram a
abarrotar e atravancar nossa mente.
Queria ser possível desaprender o
monte de baboseiras que foram a mim agregadas e que, na sua imensa maioria, de
nada me serviram, para retomar as condições originais que me permitiram
vivenciar essa sensação deslumbrante. Chamar de volta aquele garoto de sete
anos e implorar para saber como ele fez. Encurralá-lo à parede para dele
extrair tudo o que me possa informar. “Desembucha, pivete arrogante! A fórmula,
me dê a fórmula! O que você quer para me contar? Pirulitos, carrinhos, bolas de
futebol, álbuns de figurinhas, Naruto, i-pods, videogames? Pegue o que quiser.
Mas me ensine como experimentar de novo essa tal emoção.”
O sentimento de plenitude, de estar o
céu na Terra. Algo que toda a riqueza, todo o trabalho, toda a energia do mundo
seriam incapazes de reproduzir. Alguma coisa que involuntariamente foi deixada
para trás mas que, de certa forma, ficou consignada em meu ser de maneira
indelével e definitiva. Algo como o indecifrável Rosebud do Cidadão Kane, que
toda a condição opulenta e faustosa que o império por ele construído foi
incapaz de proporcionar, substituir, compensar ou recuperar.
Quando faço algum exercício de
relaxamento, meditação, ou qualquer prática que tenha por objetivo induzir a
um estado de paz interior, procuro, como estímulo, recuperar em mim um pouco da
sensação maravilhosa, presente naqueles poucos minutos. São minha referência.
Mas nunca mais me foi dada a oportunidade de experimentá-la de novo. Se a felicidade
existe, esse sentimento certamente foi o mais próximo que dela cheguei.
O sentimento não pode ser mais
alcançado, mas sua lembrança está alojada em um canto especial, protegida com
afeição e cuidado e que preservo como um momento especialíssimo de minha
existência.
Será que os usuários de drogas
conseguem experimentar algo parecido ao escapar da dureza da realidade e antes
de a ela voltar, deprimidos, esfacelados? Talvez, após a morte, recuperemos
isso em algum plano espiritual. Penso que durante nossa jornada terrena,
teremos que lidar com essa realidade restritiva e enfadonha que nos impõe
tantas limitações e tantas exigências. A mesma que nos enche de bagulhos
inúteis, enquanto fazemos de conta que vivemos, retirando cada vez mais luz do
quarto, atolado que se encontra com as normas sociais que nos foram incutidas,
as atitudes que passaram a nos ser exigidas e a colossal avalanche de
ensinamentos frívolos e dispensáveis com que nossa mente foi assolada.
Isso não significa que a vida adulta
não mais possibilite alegria e prazer. Talvez sejamos apenas incapazes de
criar situações que levem tais sentimentos agradáveis ao paroxismo, próximas
daqueles momentos sublimes. Será que se trata apenas de uma dificuldade a ser
tratada com antidepressivos e bastante terapia? Ou será que algumas frustrações
encravaram-se na alma de tal forma que não podem ser removidas?
Quando crianças, a realidade é mais
singela, derivada do nosso estado de inocência, do ‘não saber’. Quando vemos
uma criança divertindo-se a valer, com um brilho fulgurante nos olhos,
entregando-se de corpo e alma às brincadeiras, somos tomados por um misto de
encantamento por seu prazer de viver e uma preconceituosa e odiosa expressão
de superioridade derivada da arrogante constatação de ignorância sobre as coisas
“sérias” da vida. Ao mesmo tempo em que nos frustramos ante a percepção de
nossa incapacidade de nos entregar a esse prazer total de viver, saudosos dos
tempos em que podíamos também fazê-lo, consideramo-lo algo pueril, imaturo,
superado. Uma fase natural da vida, já exercida. Como se crescer
emocionalmente implicasse em abrir mão do prazer de viver, em nome do
inevitável sofrimento que as responsabilidades adultas acarretam.
Acho que, às vezes, desconto em meu
filho minha frustração por não conseguir reviver tão agradáveis momentos.
Fábio foi um menino muito feliz, intenso. Bastava olhar para seu semblante em
determinadas ocasiões para confirmar isso. Sua felicidade extravasava sua
pessoinha miúda e contagiava o ambiente à sua volta. Todos eram levados por
aquela onda, talvez o tal rio que também banhava o seu interior. Alguns,
imagino, até ficassem meio desconcertados com tamanha expansividade e euforia.
“Esse menino precisa de uns limites”, possivelmente pensassem ou, antes,
pretendessem, ao que deduzo pelos semblantes incomodados. Eu mesmo, não muito
afeito a me relacionar socialmente, procurava conter meu impulso castrador
nessas ocasiões, meio constrangido frente a situações em que meu garotão
centralizava as atenções e inundava o ambiente de alegria. Comportamento oposto
ao meu, de natureza contida e discreta, buscando passar desapercebido,
reduzindo ao mínimo o gesto, a palavra e as manifestações. Ansioso por
reinstalar rapidamente a necessária e apropriada austeridade, frígida e isenta
de emoções, como os ambientes deveriam ser normalmente.
Fábio cresceu. É hoje adolescente.
Sua postura perante a vida não é mais a mesma. Já não ri ou fala tanto.
Queixa-se de ter que acordar cedo para ir à escola, das lições, das obrigações
que a vida, ou melhor, o mundo dos adultos começa a lhe exigir, formatando o
seu comportamento para mantê-lo na linha. Não há mais espaço na turma de seus
atuais amigos para brincadeiras ‘fúteis’. As atitudes já não são mais espontâneas.
Devem obedecer às expectativas do grupo social para que não haja recriminação,
discriminação, gozação, humilhação. Começaram a ocupar o quarto dele com bugigangas.
E a luz, materializada no brilho de seus olhos, começa a se ofuscar. Cobro seu
retorno ao que era, mas sinto que, na verdade, esta atitude projeta minha
própria incapacidade de dispensar a rabugice do ambiente que me cerca e de
abrir o espírito para a porção criança que ainda persiste lá no fundo,
obstruída e sem ter como emergir. Sem poder sair da escuridão a que foi
relegada. Apenas uma pálida sombra disforme, um vestígio a subsistir nas
profundezas de meu complexo ser, mas que não pôde ser completamente extinta por
mais poderosas que sejam as forças voltadas a extirpá-la.
Afinal, o que é a felicidade? Não
saberia definir. Alguém sabe? Já escutei e li inúmeras definições, descrições,
muita teoria, muito lenga-lenga a respeito. Frases feitas, além das mais
variadas receitas de como atingi-la. Eu mesmo estou aqui tentando desde que
comecei este texto, discorrer sobre ela. Com ‘infelizes’ resultados.
Meu conceito de felicidade sempre vai
ser: estar sentado num banco traseiro de um carro num sábado às dez da manhã,
olhando balões no céu azul, a caminho de casa, para iniciar uma partida de
futebol com meus amigos de rua.
Texto publicado originalmente no livro O QUE DE MIM SOU EU