quinta-feira, 29 de junho de 2017

FELICIDADE

Devia ter eu uns sete anos, talvez oito. Estava deitado no banco detrás de um DKW. Ou podia ser um Simca. No banco da frente, conversando conversas de adultos, às quais eu não prestava a mínima atenção, estavam meu primo mais velho e meu pai. Ou, quem sabe, meu tio e meu avô. Isso não é importante. O horário? Umas nove e pouco da manhã. No máximo, dez. Era sábado – isso sim é importante! – e o dia estava ensolarado com um céu absurdamente azul. Isso tam­bém é importante! Estávamos em junho, suposição que hoje faço, pela circunstância de o céu revelar alguns alegres balões juninos que corriam ao longe, os quais podiam ser avistados mesmo com o carro em movimento. Como se eles nos acom­panhassem.
Estava radiante de alegria pois, sendo sábado, não ha­veria aula. Nada de lições e tarefas chatas. E eu teria um dia todinho de brincadeiras e diversão pela frente. E amanhã, do­mingo, outro dia sem obrigações e sem horário para acordar.
O carro dirigia-se de volta à minha casa. Não me recor­do de onde eu vinha ou por que saíra. Mas isso também não tem a menor importância. Sei apenas que estava tomado pela ansiedade da volta, pois minha turma de amigos estaria certa­mente batendo uma bola na rua, em mais uma infalível pelada homérica de sábado de manhã. Mal podia conter as batidas de meu coração ansioso, pois ele sabia que, em questão de minu­tos, eu me uniria a eles nessa brincadeira.
Pronto! Este era o quadro completo. Só isso. Acabou. E daí? Daí o quê? Nada de especial, de anormal, de notável, de formidável ou de fantástico. Com exceção de um detalhe. Es­ses minutos, esses poucos minutos de uma manhã de sábado, foram os mais felizes da minha vida.
Jamais os esqueci e jamais consegui reviver sensação de tamanha felicidade. No decorrer de minha vida, passei por tantas situações de comemoração, alegria, brincadeiras, diver­timento, sexo, viagens, conquistas, vitórias, encontros. Oca­siões ricas em elementos factuais significativos que, em tese, teriam tudo para se notabilizar e ser rememoradas. Não me recordo de nenhuma, agora. Nenhuma ficou tão fortemente marcada. Nenhuma possibilitou sentimento tão esfuziante e maravilhoso que ainda não sou tão capaz de descrever como sou de rememorar. Tudo o que as palavras conseguem fazer é resvalar nas bordas, distantes do epicentro da emoção. Era como se eu estivesse vivenciando uma magnífica festa em meu interior.
Aquela composição peculiar de elementos tão signifi­cativos ocorridos ao mesmo tempo – o sábado, o futebol, o céu azul da manhã, os balões – foi capaz de me trazer um estado de plenitude, entusiasmo, prazer de viver, como nunca acontecera antes. Tampouco depois. Algo que, mais tarde, eu viria a rotular, na inexistência de conceito mais abrangente, de ‘felicidade’. Mas que na hora me pareceu apenas bom. Bom demais! Como deveria ser a vida sempre.
Dada a recorrência com que a lembrança desse dia sur­giu em minha vida futura, procurei, anos mais tarde, adul­to, formalizar um conceito ou conferir uma descrição mais precisa ao que em mim teria ocorrido naqueles inesquecíveis momentos de êxtase. A mais próxima que se sobressaiu tive de emprestar um singelo samba de Paulinho da Viola: ‘aquele azul não era do céu nem era do mar. Foi um rio que passou em minha vida. E meu coração se deixou levar’.
É possível que, em outras ocasiões, esse mesmo con­junto de fatores, ou outro que pudesse ser tão bom quanto, ti­vesse voltado a acontecer. Mas a sensação não mais se repetiu. Talvez das outras vezes tivesse faltado uma disponibilidade interior. Ou eu não estivesse tão sintonizado com as energias positivas do universo. Não sei.
Naquele instante, eu não poderia sequer imaginar que tais momentos, aparentemente tão banais e corriqueiros, des­providos da aura de significância que algum acontecimento expressivo, digno de ser relembrado, pudesse lhe conferir, fos­sem ficar tão profundamente incrustados em minha memória e em minha alma. Nem me preocupava com isso. Ou com a ausência disso. Não havia divagações, conjecturas, elucubra­ções. Apenas um coração infantil palpitando forte, tomado por um sentimento sublime. Arrastado por um rio interno que corria caudaloso. Ali estava eu, sendo feliz. Só.
A divindade coroando a simplicidade. Talvez se algum arcanjo, conhecedor dos caminhos que meu destino tomaria, assaltado por um impulso incontrolável, tivesse descido do céu para comigo compartilhar, ao pé do ouvido, sobre a importân­cia que aquele momento teria em minha trajetória de vida, pos­sivelmente eu, recobrado do susto de me deparar com um ente divino, ao receber a inesperada revelação, ficasse atônito ante aquela observação surpreendente e sem nexo. Eu descambaria do paraíso em que me encontrava para o mundo aborrecido das definições, das explicações, das justificativas, das contextualiza­ções. Dos adultos, enfim. E meu coração, uma vez interrom­pido o suprimento do bálsamo encantado que o alimentava, murcharia, subtraído daquela preciosa sensação.
A felicidade talvez seja apenas um vazio. Como a cha­ma que reluz originalmente em nosso quarto interior. E nos é dada como uma bênção, um dom, ao ingressarmos nesse mundo. Quanto mais enchemos o ambiente de coisas, menos espaço tem ela para propagar seu brilho. E ficamos a vida inteira tentando recuperar a tal da felicidade que trazíamos como item de fábrica. Procurando onde a encontrar em meio aos entulhos que passaram a abarrotar e atravancar nossa mente.
Queria ser possível desaprender o monte de baboseiras que foram a mim agregadas e que, na sua imensa maioria, de nada me serviram, para retomar as condições originais que me permitiram vivenciar essa sensação deslumbrante. Chamar de volta aquele garoto de sete anos e implorar para saber como ele fez. Encurralá-lo à parede para dele extrair tudo o que me possa informar. “Desembucha, pivete arrogante! A fórmula, me dê a fórmula! O que você quer para me contar? Pirulitos, carrinhos, bolas de futebol, álbuns de figurinhas, Naruto, i-pods, videogames? Pegue o que quiser. Mas me ensine como experimentar de novo essa tal emoção.”
O sentimento de plenitude, de estar o céu na Terra. Algo que toda a riqueza, todo o trabalho, toda a energia do mundo seriam incapazes de reproduzir. Alguma coisa que involunta­riamente foi deixada para trás mas que, de certa forma, ficou consignada em meu ser de maneira indelével e definitiva. Algo como o indecifrável Rosebud do Cidadão Kane, que toda a con­dição opulenta e faustosa que o império por ele construído foi incapaz de proporcionar, substituir, compensar ou recuperar.
Quando faço algum exercício de relaxamento, medita­ção, ou qualquer prática que tenha por objetivo induzir a um estado de paz interior, procuro, como estímulo, recuperar em mim um pouco da sensação maravilhosa, presente naqueles poucos minutos. São minha referência. Mas nunca mais me foi dada a oportunidade de experimentá-la de novo. Se a feli­cidade existe, esse sentimento certamente foi o mais próximo que dela cheguei.
O sentimento não pode ser mais alcançado, mas sua lembrança está alojada em um canto especial, protegida com afeição e cuidado e que preservo como um momento especia­líssimo de minha existência.
Será que os usuários de drogas conseguem experimen­tar algo parecido ao escapar da dureza da realidade e antes de a ela voltar, deprimidos, esfacelados? Talvez, após a morte, re­cuperemos isso em algum plano espiritual. Penso que durante nossa jornada terrena, teremos que lidar com essa realidade restritiva e enfadonha que nos impõe tantas limitações e tan­tas exigências. A mesma que nos enche de bagulhos inúteis, enquanto fazemos de conta que vivemos, retirando cada vez mais luz do quarto, atolado que se encontra com as normas sociais que nos foram incutidas, as atitudes que passaram a nos ser exigidas e a colossal avalanche de ensinamentos frívo­los e dispensáveis com que nossa mente foi assolada.
Isso não significa que a vida adulta não mais possibili­te alegria e prazer. Talvez sejamos apenas incapazes de criar situações que levem tais sentimentos agradáveis ao paroxis­mo, próximas daqueles momentos sublimes. Será que se trata apenas de uma dificuldade a ser tratada com antidepressivos e bastante terapia? Ou será que algumas frustrações encrava­ram-se na alma de tal forma que não podem ser removidas?
Quando crianças, a realidade é mais singela, derivada do nosso estado de inocência, do ‘não saber’. Quando vemos uma criança divertindo-se a valer, com um brilho fulgurante nos olhos, entregando-se de corpo e alma às brincadeiras, somos tomados por um misto de encantamento por seu prazer de vi­ver e uma preconceituosa e odiosa expressão de superioridade derivada da arrogante constatação de ignorância sobre as coi­sas “sérias” da vida. Ao mesmo tempo em que nos frustramos ante a percepção de nossa incapacidade de nos entregar a esse prazer total de viver, saudosos dos tempos em que podíamos também fazê-lo, consideramo-lo algo pueril, imaturo, supe­rado. Uma fase natural da vida, já exercida. Como se crescer emocionalmente implicasse em abrir mão do prazer de viver, em nome do inevitável sofrimento que as responsabilidades adultas acarretam.
Acho que, às vezes, desconto em meu filho minha frus­tração por não conseguir reviver tão agradáveis momentos. Fábio foi um menino muito feliz, intenso. Bastava olhar para seu semblante em determinadas ocasiões para confirmar isso. Sua felicidade extravasava sua pessoinha miúda e contagiava o ambiente à sua volta. Todos eram levados por aquela onda, talvez o tal rio que também banhava o seu interior. Alguns, imagino, até ficassem meio desconcertados com tamanha ex­pansividade e euforia. “Esse menino precisa de uns limites”, possi­velmente pensassem ou, antes, pretendessem, ao que deduzo pelos semblantes incomodados. Eu mesmo, não muito afeito a me relacionar socialmente, procurava conter meu impulso castrador nessas ocasiões, meio constrangido frente a situa­ções em que meu garotão centralizava as atenções e inundava o ambiente de alegria. Comportamento oposto ao meu, de natureza contida e discreta, buscando passar desapercebido, reduzindo ao mínimo o gesto, a palavra e as manifestações. Ansioso por reinstalar rapidamente a necessária e apropriada austeridade, frígida e isenta de emoções, como os ambientes deveriam ser normalmente.
Fábio cresceu. É hoje adolescente. Sua postura perante a vida não é mais a mesma. Já não ri ou fala tanto. Queixa-se de ter que acordar cedo para ir à escola, das lições, das obri­gações que a vida, ou melhor, o mundo dos adultos começa a lhe exigir, formatando o seu comportamento para mantê-lo na linha. Não há mais espaço na turma de seus atuais amigos para brincadeiras ‘fúteis’. As atitudes já não são mais espon­tâneas. Devem obedecer às expectativas do grupo social para que não haja recriminação, discriminação, gozação, humilha­ção. Começaram a ocupar o quarto dele com bugigangas. E a luz, materializada no brilho de seus olhos, começa a se ofus­car. Cobro seu retorno ao que era, mas sinto que, na verdade, esta atitude projeta minha própria incapacidade de dispensar a rabugice do ambiente que me cerca e de abrir o espírito para a porção criança que ainda persiste lá no fundo, obstruída e sem ter como emergir. Sem poder sair da escuridão a que foi relegada. Apenas uma pálida sombra disforme, um vestígio a subsistir nas profundezas de meu complexo ser, mas que não pôde ser completamente extinta por mais poderosas que sejam as forças voltadas a extirpá-la.
Afinal, o que é a felicidade? Não saberia definir. Alguém sabe? Já escutei e li inúmeras definições, descrições, muita te­oria, muito lenga-lenga a respeito. Frases feitas, além das mais variadas receitas de como atingi-la. Eu mesmo estou aqui ten­tando desde que comecei este texto, discorrer sobre ela. Com ‘infelizes’ resultados.
Meu conceito de felicidade sempre vai ser: estar sen­tado num banco traseiro de um carro num sábado às dez da manhã, olhando balões no céu azul, a caminho de casa, para iniciar uma partida de futebol com meus amigos de rua.


Texto publicado originalmente no livro O QUE DE MIM SOU EU



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