A Copa do Mundo é fascinante. O que mais me encanta, todavia, não é o
futebol em si mas um aspecto, digamos, sociológico do evento: o congraçamento
entre os povos que ele possibilita.
Parece surreal que nações com culturas e sistemas de governo tão
díspares, com divergências aparentemente irreconciliáveis, que se recusam a
sentar à mesa para dialogar acerca de um mero acordo econômico ou de desarmamento,
disponham-se, respeitosas, a participar de um evento coletivo, obedecendo
obsequiosamente a suas estritas regras.
É verdade, estiveram ausentes países “polêmicos” como EUA, Coreia do
Norte, Afeganistão, Turquia, Síria, Palestina, Israel, Venezuela. Mas não foi
por boicote ou motivos políticos e sim por meras razões “técnicas”: perderam os
jogos na fase de classificação e ficaram de fora.
Até o Estado Islâmico ou o Talibã, se chegassem ao poder, já estariam ansiosamente
se preparando, imagino, para enviar equipes. Xiitas, sionistas, bolivarianos,
neoliberais, xenófobos e comunistas, todos se rendem à magia do velho ‘soccer’,
que desde que foi criado na Inglaterra há 120 anos, vem se espalhando pelo
mundo mais rápido que o capitalismo.
Parece que o tal “football” tem essa capacidade de se sobrepor a outros
aspectos da vida comunitária sem ser por eles contaminado.
E não adianta vir com nhem nhem nhem´s filosóficos, ideológicos,
econômicos. As regras são claras. Ganha quem colocar, sem usar as mãos, a bola
mais vezes entre as traves da equipe adversária. Ponto final!
Ao ingressar em campo, as condições são equânimes. Sem privilégios, quotas,
barreiras cambiais ou sobretaxas. O destino do embate é ditado por aquele
objeto esférico de 20 cm de diâmetro e menos de meio kilo, a cujos caprichos todos
se rendem, resignados.
Europeus, asiáticos, americanos, africanos e australianos, ao ingressarem
em campo, esquecem suas crenças, idiossincrasias e preconceitos. Passam a ter
um único objetivo pelos próximos 90 minutos: encaixar a redonda no exíguo
espaço retangular de 2,44 m de altura por 7,32 m de largura, que ainda por cima é
guarnecido por um sujeito que, não bastasse, pode usar as mãos!
Para conseguir ascendência sobre o adversário, cada país recruta diligentemente
11 homens. Não são soldados munidos de morteiros e granadas que portam
vestimentas a prova de balas. Os convocados são apenas atletas trajando short e
camiseta, cujo diferencial se resume à habilidade em se relacionar com o tal
objeto esférico. E a batalha não é para impor seu sistema de governo ou a
hegemonia do seu povo. É simplesmente para inserir um número de arremetidas no
espaço retangular (alcunhado de gol) do outro, superior às que o adversário
fará no seu.
Tal objetivo não é atingido
através de corrida armamentista nem ações diplomáticas. As diferenças são
resolvidas dentro do campo pelas equipes mediadas por um juiz, ao que se
espera, imparcial. Os representantes zelam para que não haja conluio dos
organizadores para prejudicá-los. Prevalece um clima de confiança nas
instituições futebolísticas.
Há, é verdade, um organismo internacional que estabelece as regras e
administra o funcionamento, a FIFA. Afora naturais divergências apaziguáveis e
alguma corrupção, a coisa mais ou menos funciona, tanto que as delegações do
mundo inteiro, apesar de alguma chiadeira, se submetem. Tudo é feito pela
entidade supranacional, num sistema de representação eficiente que deveria ser
modelo para a inoperante ONU.
Em outras circunstâncias, o futebol não tem essa mesma natureza, digamos,
democrática. O poder da grana e patrocínios milionários têm cada vez mais
extraído a beleza e a espontaneidade do jogo. Mas durante a Copa do Mundo, esse
aspecto maléfico fica menos evidente pois os jogadores, independente do time que
os contratou, comparecem defendendo sua nação com o que têm de melhor: a
técnica germânica, o improviso brasileiro, a frieza britânica, a garra portenha, a
velocidade senegalesa, a disciplina nipônica etc.
Um certo cuidado é necessário para impedir o doping ou alguma marmelada
escusa para melar a lisura da disputa. Ainda mais em se tratando do país de Vladimir
Putin. Mesmo assim, durante a trégua ensejada pelo certame, é hora de desarmar
os espíritos.
O país-sede empenha-se em receber de braços abertos os visitantes. Nenhum
anfitrião nessa hora quer dar vexame e passar por troglodita intolerante. A boa
recepção de convidados garante uma boa imagem perante os bilhões de espectadores
grudados na telinha.
Quem viu o afável presidente russo posar sorridente para as câmaras na solenidade de abertura,
jamais poderia imaginar que se trata do ex-agente da KGB que elimina desafetos
e fornece armas para ditadores sanguinários.
Nessa hora, a recepção cordial aos estrangeiros é imprescindível para que
esses levem boa impressão para casa. E, cientes dessas circunstâncias, turistas
de todo o mundo se reúnem para celebrar o torneio carregados de dólares. Nos
estádios, as torcidas se misturam sem agressões. Afora, a presença de meia dúzia
de patéticos hooligans, o que se vê são torcedores alegres portando bandeiras e
adereços que querem apenas incentivar seu time, num clima saudável e festivo de
competição esportiva.
Quadro bem diferente daquilo em que se transformaram os campeonatos
nacionais ou regionais em que organizações criminosas alcunhadas de “torcidas
organizadas” vão a campo, munidas de porretes e barras de ferro para eliminar
fisicamente os torcedores rivais.
O futebol tem essa virtude de fascinar igualmente pessoas de todas as
culturas e continentes. Muçulmanos, judeus, cristãos, budistas, todos esquecem
provisoriamente seus dogmas e se rendem à magia da bola rolando no gramado e da
emoção da rede balançada.
Cá no Brasil, a rivalidade antes focada nos que têm ideias divergentes,
transfere-se para os adversários escalados pela tabela. Nossos inimigos da
ocasião são a Suíça, a Costa Rica, a Sérvia. Ao invés de odiar Temer, Lula ou FHC,
as pessoas voltam seu fogo para o juiz ladrão, o técnico “burro” e a violência do
zagueiro oponente.
Mas não nos iludamos. Decorrido o armistício proporcionado pela Copa,
tudo voltará como era dantes. Erguida a taça, finalizados os festejos de
encerramento, e retornando os torcedores a seus lares, o espírito esportivo é
sepultado. Putin poderá voltar a dedicar-se a financiar a morte de crianças
sírias e cá no Brasil voltaremos a nos trucidar uns aos outros nas redes
sociais.
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