domingo, 3 de fevereiro de 2019

VEGETARIANISMO


“Cavalheiro, o cardápio de hoje apresenta duas opções. No primeiro prato, jaz um bife, pedaço estorrica­do de tecido morto, extirpado de um bovino abatido com crueldade, tendo sido, ainda em vida, cortada sua jugular e sobre sua cabeça desferido um golpe com um marrete de 20 kg. Acompanha um pouco do sangue remanescente do processo de degola. Na segunda opção, uma deliciosa salada mista com diversos tipos de folhas de verduras frescas cultivadas organicamente, transportando para o seu organismo ingredientes vitais do solo e fibras que auxiliam o metabolismo e combatem o colesterol. Acompanha quiche de espinafre.”
Certamente, a esmagadora maioria irá preferir a primei­ra opção, frustrando a tentativa de aliciamento efetuada pelo garçom vegano.
O costume de consumir cadáveres de animais grelhados, vulgarmente conhecidos como churrasco, está encravado em nossa civilização, associado a um congraçamento pagão, en­volvendo farra, uma informalidade ligeiramente trans­gressora e, não raras vezes, embriaguez. Churrasco no domingo virou carne de vaca.
Os propalados malefícios da carne, especialmente a vermelha, à saúde não parecem sensibilizar as pessoas, já com hábitos de cultura alimentar arraigados ao longo de gerações e pouco propensas a abrir mão do primitivo prazer carnal. De fato, é inimaginável um encontro da turma no fim de semana para assistir futebol, tomar cerveja, tendo à mesa um prato de tofu grelhado com broto de feijão ao molho shoyu.
Deixar de ingerir carne não é uma decisão fácil. Meu caso é ilustrativo. Descendente de árabes, acostumei-me a ter à mesa apetitosos quitutes como quibe, michui e outras delícias carnívoras da culinária moura. Até que, num belo dia, há uns trinta anos, tomei a decisão de largar a carne. Minhas escolhas nutricionais foram se reformulando aos poucos até que a vaca definitivamente foi pro brejo.
Ás vezes, tenho uma recaída quando me deparo, por exemplo, com um quibe de bandeja igual ao da minha mãe, ‘reencarnando’ os tempos das vacas gordas. Umas pequenas transgressões a que me permito já que... a carne é fraca! Churrasco, todavia, há muito deixou de me des­lumbrar. Provoca-me nada mais que um ligeiro enjoo.
No Oriente Médio, os pratos eram originalmente preparados à base de carne de carneiros, criados, imagino, livremente no deserto. A inclusão dos hormônios e das marretas não estava prevista. Ainda assim, torço para haver um sopro de flexibilização dos rígidos e seculares costumes sarracenos, adotando uma dieta mais light, susceptível aos tempos atuais. Quem sabe um delicioso quibe de... abóbora?
Um método poderoso de tornar-se vegetariano é fazer uma instrutiva visita a um matadouro ou a uma avícola, a fim de presenciar in loco o espetáculo grotesco de como os pobres e pacíficos animais são aniquilados para que lhes seja arrancada a carne. Carnificina! Se o estômago aguentar a experiência, pelo menos, nunca mais vai apreciar uma picanha da mesma maneira. Não pesando na digestão, pesará, pela cumplicidade, na consciência. A carne não mais descerá impune.
Ao contrário do que acontece quando nossos dentes dilaceram um pedaço de carne, portador do terror da morte em suas entranhas, nossa conexão nutricional com os frutos da terra é um enlace com a vida. Ainda que uma planta possa conceder sua vida para nos fornecer alimentação, não há, suponho, sofrimento e dor nessa entrega. Parece mais um ato de integração com a Natureza.
Quando a cadeia alimentar realiza-se entre o animal homem e os vegetais, o ciclo da vida fecha-se de uma maneira conservativa. É sabido que a pecuária é uma das atividades mais impactantes sobre o meio­-ambiente em termos de devastação de florestas, utilização de insumos e até efeitos sobre o aquecimento global. Não fosse por outra, esta razão já seria suficiente para repensar os hábi­tos alimentares: adotar uma prática ambientalmente correta.
Ingerir vegetais é trazer o espírito da selva para dentro do corpo. Interagir com a natureza, extrair dela a essência da vida, integrando-se ao espírito de Gaia. É resgatar nossa dí­vida com o planeta, contraída nos descaminhos da civilização ocidental, que descambou para práticas antropo­cêntricas e economicistas, subordinadas ao mercado. É conectar-se com o Universo e com Deus, seja Ele quem ou o quê for. E seja lá onde estiver, certamente estará a léguas dos fast foods, das praças de alimentação e da algazarra que cerca as refeições feitas às pressas nos shoppings da vida.
A prática básica que leva a esse rompimento é a inserção da salada nas refeições. Tenras folhas de alface ameri­cana, escarola, rúcula, agrião, colorizadas por fios de beterraba e de cenoura, brotos de alfafa e fatias de tomate caqui, regadas com azeite, alho, sal e limão. Uma salada no almoço instala um oásis interno e capacita-nos a voltar com leveza à aridez da vida cotidiana.
Substituir folhas verdes frescas por ali­mentos industrializados, cheios de aditivos e conservantes, é, com perdão da expressão, um verdadeiro ‘desplante’!
Para reverter essa situação, uma boa técnica é um banho estomacal verde. Saturar o organismo de clorofi­la. O ideal é já começar o dia com um suco detox. Couve, espinafre, hortelã, salsinha e salsão. Pode-se agregar ramas de verduras que na feira jogam fora. Acrescentem-se pepino, cenoura, maçã e chia. Bate-se com água. Coa­-se, de modo a extrair da massa verde até a última gota do precioso sumo. É o sabor da vida descendo pelo gogó, enveredando pelo esôfa­go, passando pelo tubo digestivo até se instalar refrescante no estômago. Ao sair do liquidificador, é possível entrever uma aura verde fluir energeticamente do interior daquele líquido espumante, provinda da fusão de elementos vitais que concorrem para a mistura exta­siante. Parecemos nos colocar sob o efeito do pó de pirilimpimpim. O perfuminho da clorofila remete ao mistério das florestas tro­picais virgens. Com algum esforço, é possível ver duendes e fadas dançando em volta do copo. Um exército de micronutrientes transporta­dos pelo caldo da trituração invade o intestino e instala a livre circulação no aparelho digestivo.
Se você estiver anestesiado pelo sabor edulcorado e plastificado do açúcar e do ciclamato dos refrigerantes, ener­géticos e outras drogas industrializadas, é preciso um estágio antes de receber o choque verde de Avatar. Procure ir introduzindo os elementos naturebas em seu cardá­pio. É preciso ‘implantar’ em nosso organismo o sabor das florestas tropicais. Aos poucos. Não adianta botar o carro de alfaces na frente dos bois.
Voltando à vaca fria, que tal adotar dieta vegetariana nos presídios? Certamente essa medida aumentaria a taxa de regeneração, além da economia para o contribuinte, já que a alface é bem mais barata que coxão mole. A carne certamente insufla a violência. Rituais de brutalidade combinam com álcool e carne. Alguém já viu um estuprador vegetariano? Um criminoso que passe cinco anos comendo legume e arroz integral certamente terá maior chance de voltar à sociedade com melhores condições de amar a vida e respeitar o próxi­mo.
Talvez seja só um sonho. Mas tenho a impressão de que um futuro melhor não pode depender apenas de mudanças político-sociais. É preciso uma revolução pessoal em que cada indivíduo conceba o mundo de uma maneira mais solidária a todos os seres vivos. Adotar a dieta vegetariana ou vegana é parte dessa transformação.




Adaptado de texto do Livro O QUE DE MIM SOU EU