quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

RUA DO BISPO



Quando criança, costumava jogar futebol a 50 m de casa, em um terreno baldio, no bairro do Paraíso em São Paulo. Ficava numa rua simpática e pouco movimentada que começava onde os bondes faziam um balão no início da Av. Paulista e terminava próximo a um campo de futebol de várzea por onde viria a passar a Av. 23 de Maio. Chamava-se Rua do Bispo. Não sei de onde surgiu esse pitoresco nome nem me importava saber, voltado que estava para questões mais importantes, como brincar e ser feliz.

Muitas ruas carregavam normalmente nomes singelos, imbuídos da simplicidade coloquial daqueles tempos inocentes. Uma ou outra recebia um nome de algum personagem histórico. Mesmo nesses casos, a população tratava de adotar, a seu modo, uma simplificação de modo a adaptar o título à sua proverbial e pragmática conveniência minimalista, dispensando-se de memorizar nomes desnecessariamente extensos. A Av. Brigadeiro Luís Antonio virou Brigadeiro, a Rua Teodoro Sampaio virou Teodoro, a Praça Ramos de Azevedo virou Praça Ramos etc.
Moleques peraltas, não nos incomodávamos de jogar bola em campos improvisados sobre paralelepípedos desencontrados, nos tempos em que o leito irregular de uma rua era o bastante para que fosse transformada em arena futebolística. Os minguados automóveis passavam numa frequência inimaginável para os padrões atuais, ao que conferíamos ao solitário usuário da via, reverenciosa deferência, interrompendo respeitosamente o jogo até o proprietário do veículo importado acabar de desfilar sua altivez motorizada.
Aquela região concentrava igrejas importantes e suntuosas, como a N. Sra. do Paraíso (árabe melquita), a Ortodoxa e a Sta. Generosa, sem contar o colégio religioso Maria Imaculada. Nada mais natural que denominar aquela rua, que ladeava o circuito episcopal, de Rua do Bispo.
Todo o fim de semana reuníamo-nos ‘religiosamente’ na Rua do Bispo, para jogar uma nada pecaminosa ‘pelada’. Simpática rua. Lembra-me travessuras, traquinices e bem aventuradas diabruras.
Vivíamos no paraíso, até revogarem o nome da Rua do Bispo. Fosse ‘Rua Bispo Fulano de Tal’ ninguém certamente mexeria no santo nome. Não era o caso daquele nome simplório, adquirido possivelmente em função de, em tempos imemoriais, ali haver residido um homem de Deus, quem sabe um santo benfeitor. Esse detalhe histórico foi naturalmente atropelado. Não fosse assim, o incógnito clérigo não teria sido importunado.
O fato é que, à revelia da santa madre igreja, a rua do bispo (com minúscula mesmo já que o santo não era forte) passou a ostentar o pomposo nome, que conserva até hoje: Rua Desembargador Eliseu Guilherme.
As placas afixadas nos muros das casas, que outrora exibiam aquele prosaico letreiro de apenas 5 caracteres, passaram a estampar a nova denominação, onde dezenas de letras se atracavam para não ficar de fora daquele nome que ninguém conseguia decorar. Os encontros futebolísticos, agendados para a rua do bispo, passaram a ser marcados ‘para a esquina’.
Sendo, por natureza, um perseverante crédulo na boa índole da raça humana, faço força para acreditar que houvera sido o desembargador um homem honrado, de caráter ilibado, que desembargava com incansável precisão e justiça salomônica as demandas que tinha a incumbência de, por dever de ofício, apreciar.
Pode ser que esteja empenhado nesta insana cruzada para recuperar o título sagrado do pontífice anônimo, cometendo irreparável injustiça com o Dr. Guilherme. É possível que fosse alguém de bem, alheio às injunções espúrias que se fizeram em seu emplacado nome. A verdade é que lhe criei certa antipatia, talvez improcedente, pelo fato de ter usurpado o nome original daquela rua tão marcante de minha infância. O homem...nageado que, há décadas deixou o reino dos viventes e dos políticos, deve estar se remoendo no caixão por ser tratado de maneira tão vil e descortês por esse escriba fariseu mal informado. Preferiria talvez ter o desembargador esse assunto desembargado de polêmica.  O fato é que o seu nome ficou fincado na Rua do Bispo, como eu, insubordinadamente, continuo-a a chamar, indiferente aos olhares perplexos dos atuais moradores, desinformados das peculiaridades históricas daquele logradouro.
O tempo passou, o leviatã urbano irrompeu, rendeu os paralelepípedos irregulares, os bondes, os campos de várzea e os prelados anônimos, o Paraíso virou inferno.
Mas continuo a lembrar-me da Rua do Bispo com saudade...



Adaptado de texto do livro O QUE DE MIM SOU EU


sábado, 14 de dezembro de 2019

A PELEJA DA MENINA GRETA CONTRA O PODEROSO MONSTRO BOSTOSSAURO, DEVORADOR DE SONHOS


O mero protesto de uma garota de 16 anos contra mudanças climáticas gerou uma tresloucada reação de ódio do homem que ocupa o mais alto cargo da Nação.
Não era de se esperar outra coisa. O ‘monstro Bostossauro’ assumiu a presidência com o inabalável propósito de destruir a rebeldia juvenil assim como o faz em relação ao meio-ambiente, às artes, à educação e às ciências, todos contaminados perigosamente pelo letal vírus “esquerdista”.
A ideia de adolescentes (e mulheres ainda por cima!) saírem de sua ‘zona de conforto’ (a casa, sob olhares vigilantes de pais castradores) para protestar é inaceitável. Não lhe passa pela cabeça que jovens bem criados e alimentados possam ousar vir às ruas se manifestar sobre o clima ou seja lá o que for.
Greta não está sozinha. Acompanha-a uma legião fiel de seguidores, quase todos adolescentes. Não protestam por uma ideologia ou pela troca de governo, mas por uma atitude de maior responsabilidade e menos hipocrisia dos adultos. Lutam para que as futuras gerações não herdem um mundo devastado por ações inconsequentes de pessoas gananciosas, guiadas por interesses imediatistas.
Que nobre causa! Deveriam ser louvados e incentivados. Ao contrário do que fez o não menos arrogante presidente Trump que sugeriu à menina ativista que vá para casa assistir filmes na TV (quem sabe Rambo?). Que permaneçam alienados, brincando com seus celulares e games e não interfiram com o crescimento da indústria (que gera empregos e impostos) para que ela possa continuar expandindo impunemente seus tentáculos sobre o que resta do planeta, destruindo as florestas, envenenando o ar, poluindo os oceanos...
Bostossauro gostaria de ver todas as crianças com uniformes (fardas?) prestando continência à bandeira do Brasil (e dos EUA?), cantando hinos (religiosos?) em escolas (militares?) com rígida disciplina (fascista?) e desde cedo aprendendo sobre segurança (armas?)
Brincadeiras, travessuras, abraços, livros, poemas, canções, violões, flores, árvores, animais, índios e sonhos coloridos não fazem parte desse árido mundo pós-civilizatório e pré-apocalíptico.
O Capitão Bostossauro encarna o Coronel Miles do filme Avatar que queria destruir as florestas a mando dos que ambicionam as riquezas que guardam. Quer implantar no país uma República arcaica fundamentalista dominada por madeireiros, grileiros, garimpeiros, plantadores de soja, latifundiários, terraplanistas, milicianos e evangélicos fanáticos.
Bostossauro tem orgulho de seus filhos que posam com armas e se dedicam a propagar ódio nas redes sociais. Gostaria que todos os jovens tivessem essa índole violenta. Odeia quem prega a paz, a solidariedade, a tolerância.
E odeia todos os que defendem o meio-ambiente, sejam pirralhas, marmanjos, artistas, doadores ou cientistas. Tais indivíduos representam obstáculos ao país dos seus sonhos, dominado pelo agronegócio e pelas mineradoras, sem parques, áreas de proteção e reservas indígenas.
No projeto bostonarista pouco ou nada sobrará do nosso riquíssimo patrimônio ambiental, incluindo os inigualáveis recursos hídricos, as imensas florestas, sua biodiversidade e os ainda inexplorados segredos medicinais que ela reserva. Tampouco nossa diversidade cultural, sobretudo os índios.
Esses guardiões da floresta, autênticos ancestrais da brasilidade que carregamos, legítimos donos da terra onde foi erguido o país, vêm sendo covardemente eliminados e massacrados, ante o olhar complacente das autoridades. Deveriam ser não apenas protegidos mas também respeitados e reverenciados pelo chefe da Nação. Sem precisar levar bronca de uma menina de 16 anos.