Nossa sociedade mantém uma relação “profana” de
usurpação com os recursos da Natureza. A água e outros bens naturais são vistos
apenas como matéria-prima que possibilita o bem-estar do ser humano. As
ciências, nas bases em que evoluíram, sancionam essa extorsiva apropriação.
Todavia, o real valor da água vai bem além da função
que lhe destina o utilitarismo materialista do homem civilizado. Reduzi-la a
essa condição é espezinhar outros modos de se relacionar com o bem, associados
a diferentes formas de valor. Como elemento ecológico, por exemplo, a água
desempenha papel fundamental no equilíbrio dos ecossistemas. É dotada também de
inestimável valor histórico, social, cultural, estético e simbólico.
Muito mais do que nos utilizarmos da água, somos água.
A água é 70% de nossa constituição. Essa representação significa que observador
e coisa observada são um só e sujeito confunde-se com objeto. Nossa dependência
desse elemento vital provém do momento em que fomos concebidos. Mais do que
isso, a própria vida no planeta Terra originou-se em seu interior. E até hoje
conserva traços dessa conexão primitiva. O contato com a água, além de
proporcionar reconhecidas virtudes terapêuticas, resgata ao corpo uma prazerosa
sensação de harmonia.
Em função dessa condição de essencialidade, a água tem
sido objeto de ritos sagrados e devoção em todas as épocas por todas as grandes
culturas e religiões, associada à fonte da vida, à purificação, à regeneração,
à proteção contra o mal e outras qualidades mágicas.
Ao fazer da água objeto de estudo das ciências
físicas, biológicas e sociais, o caminho é o de dessacralizá-la, coisificá-la,
arrancá-la de sua condição sublime. Não nos cabe extrair da água sua divindade,
e sim irrigar os áridos campos científicos com um pouco da energia vital de que
aquele precioso líquido é dotado.
Degradada a fonte da vida degradou-se também a vida. Mas
não foi a água que mudou. É bem verdade que está ela carregada de substâncias
cada vez de pior espécie. Porém, em sua essência, continua ela tão H20 como
sempre foi. Apesar de bem menos cristalina e mais mal cheirosa, continua ela a
correr líquida, solta e indomável, indiferente às reflexões humanas a seu
respeito. Tampouco mudou o homem, pelo menos no que concerne a suas
necessidades fisiológicas relacionadas com o bem em questão.
Os conceitos científicos é que parece não estar se
adequando mais. Não se pode fazer a água se sujeitar a modelos concebidos para
abrigá-la. Ao sair de suas sólidas bases e entrar nesse campo, digamos, mais
fluido, as ciências também revelam suas deficiências e fragilidades
metodológicas. Efetuar uma análise desse bem de qualidades tão invulgares, e
primordiais coloca as ciências diante de um colossal desafio que as obrigará
reavaliar alguns de seus fundamentos.
Deve-se considerar que a água possui também um inestimável
valor, cultural, religioso e histórico associada ao nascimento de importantes
civilizações (inclusive a nossa, que teve como marco inicial o nascimento da
Mesopotâmia, entre o Tigre e o Eufrates), que surgiram às margens dos rios ou à
beira do mar. Sob a água, outras teriam sucumbido como Atlântida.
Em todas as culturas e religiões, ela aparece como
símbolo marcante. Nas tradições judaica e cristã, a água simboliza, em primeiro
lugar, a origem da criação. Contendo o elemento de regeneração corporal e
espiritual, as chuvas e o orvalho trariam consigo a fecundidade e manifestariam
a benevolência divina e os rios seriam agentes da fertilização.
As águas de rios sagrados como o Ganges (para os
hindus) e o Jordão (para os hebreus e cristãos) teriam o poder de “lavar” a
alma de quem nelas se banhasse. Do batismo a ablução, teria o poder de
purificar os homens dos pecados e impurezas.
O Corão designa a água que vem dos céus como um dos
signos divinos. No Novo Testamento, aparece com destaque nas palavras de
Cristo: “Quem beber a água que eu lhe darei, nunca mais terá sede, pois a água
que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna”
(João 4:14).
Representa a sabedoria taoísta, porque não tem
contestações. É livre e desimpedida, corre segundo o declive do terreno: “A
água não se detém nem de dia nem de noite” diz Lao-Tsé. Para o I Ching, o
oráculo milenar da cultura chinesa, “a água flui ininterruptamente, e chega à
sua meta” (hexagrama 29), servindo de modelo de conduta para o homem: preencher
todas as depressões antes de seguir adiante.
Para diversas tribos indígenas, as águas acolhem
espíritos e divindades. Para ela são entregues pelos umbandistas as oferendas
dirigidas a Iemanjá. Personifica também qualidades encantadas, constituindo-se
em morada de ninfos e deuses.
Possui a água significado mítico e psicológico,
integrando o imaginário coletivo, associada a aventuras rumo ao misterioso ou
jornadas a um novo mundo. As águas profundas representam o impenetrável
inconsciente ou o reino obscuro do desconhecido.
Sendo ela que permite a vida, é vista também como
bênção, elemento sagrado, que teria o poder de curar, purificar e rejuvenescer.
Em função dessa importância simbólica, a conservação
da água em bom estado tem um valor que em muito transcende as necessidades
relacionadas com o seu uso. Sua deterioração coloca sob ameaça a própria
integridade da vida social e cultural. A poluição é o câncer da água. Todos
vêem na água como que o elemento vital primordial: a fonte da vida, que deve
ser preservada.
Texto adaptado da minha tese “O VALOR ECONÔMICO DA
ÁGUA”, escrito em 2002, como tese de Mestrado para o PROCAM – Programa de
Ciência Ambiental da USP.
2 comentários:
O único meio de salvar a água é considerá-la um bem econômico.
A água só terá salvação quando for considerada um bem econômico.
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