terça-feira, 9 de março de 2021

VAGABUNDO DESALINHADO

 

Esparrama-se o vagabundo liquidamente das irredutíveis fronteiras lineares delineadas pelos carris da inabalável e fria via férrea ferruginosa que insidiosamente enverga pelo interior da caverna da noite desluada. Cambaleia, ziguezagueando as linhas teimosamente paralelas que se fincam qual degraus de uma escada infinita, relutantemente escorada em adormecidos dormentes de madeira morta.

O estropiado estafermo faz de conta que contas faz dos muitos trilhos, trilhões, a serem pisados, trilhados, noite adentro, madrugada afora. Até que possa concluir sua jornada transnoitana e, entregue, entregar ao destino seu desatino, sua desgraça e sua carcaça, carga esquálida retalhada, remendada, fétida, com seus carbonizados trapos de chumaços, esparadrapos, plásticos, fezes, graxa, gangrenas e vermes.

Pensamentos estupendamente estúpidos irrompem da demente mente encharcada desse maltrapilho espalhafatoso, palhaço espalhado, empalhado, gosmento, azedo, asqueroso, podre, pútrido.

Aos percalços, pés descalços, vaga vagabundo aos trancos pelos flancos e barrancos, bebadamente descaminhando. Apega-se desesperado à cadência sensata dos trilhos que emergem, sóbrios, soberbos, da escuridão suburbana e molhada, à espera do banido trem da remição. Dão-lhe o suporte cadenciado para, na perdição, não se perder, para não acabar de se acabar.

Esborracha-se o borracho pesado, despedaçado, caindo-se na verticalidade de seu próprio aprumo. Esvai-se e esvazia-se de si. De algum ponto de vista, avista tortas, tontas e tantas linhas desalinhadas, a formar disformes formas deformadas.

Do trotar sereno, sonoro e sonado de minhas imprecisas teclas, fugazes palavras ocorrem oblíquas, reversas, impostoras, bocejadas. Conduzem elas lisergicamente o apalpar dos meus dedos titubeantes e dos meus toques flutuantes no ritmo dos passos esparsos, dos trôpegos tropeços, desse arremedo medonho de homem, embriagado pelo aguardente desejo de dobrar a irretorquível sequência das estacas tecladas do cambaleante comboio. Lerdas letras alongam-se, engalfinham-se, recusando-se a compor vocábulos e sentidos. Meus olhos desoculados, indolentes entreveem turvas curvas e imprecisas imagens difusas e confusas, inspirando-me a desconstruir, pelo avesso, ideias dispersas e a formar vagas frases vagabundas.

Tiro-me.

 

Texto extraído do meu livro O QUE DE MIM SOU EU



Um comentário:

Paulo Roberto de Almeida disse...

Vc é um grande poeta, mas suspeito que o destinatário destas linhas desalinhadas desistiria de ler na segunda linha, por não entender o que vc esttdizendo.