“O amor vem por princípio, a ordem por base/O progresso é que deve vir por fim/Desprezastes esta lei de Auguste Comte/E fostes ser feliz longe de mim” (POSITIVISMO, Noel Rosa e Orestes Barbosa)
Bandeiras são símbolos que remetem à
identidade de uma nação. Constituem-se em autênticas obras de arte por
sintetizarem os valores de um povo usando apenas tonalidades e elementos gráficos
ou temáticos sobre um fundo retangular.
Aqueles que conceberam a bandeira
brasileira em seu formato atual, entretanto, deliberaram que as cores (o verde
das matas, o amarelo do ouro e o azul dos céus) e demais configurações (o
losango, a esfera e as estrelas representando as unidades da federação) eram insuficientes
para expressar os preceitos almejados e resolveram encaixar também uma faixa
branca contendo a divisa ‘ORDEM E PROGRESSO’.
Ideia de jerico! Bandeiras não
deveriam conter palavra nenhuma, tanto que são raríssimos os exemplos de países
que apõem dizeres em seu símbolo máximo. Apenas uma ou outra traz uma epígrafe
em latim e, no caso de países árabes em que o islamismo está arraigado na vida social
e política, algumas trazem a inscrição “Allahu Akbar” (“Deus é Grande”).
Ao contrário de símbolos e cores (que
compõem uma representação visual) que são atemporais, palavras de exortação, ainda
mais expressas no idioma nativo que estrangeiros não entendem, envelhecem com o
tempo. Refletem o ‘zeitgeist’ (espírito da época), o conjunto de valores
prevalecentes no início da República (fim do século XIX). Tal qual as ideias
que exprimem, tornam-se anacrônicas.
Além do mais, os termos ‘Ordem’ e ‘Progresso’
evocam os tristes tempos da ditadura. São palavras datadas que traduzem o
ambiente das casernas e refletem os tópicos prioritários concebidos pelos
militares para um governo ideal: implantar ‘ordem’ para impedir manifestações divergentes,
tachadas de ‘subversivas’ (‘desordem’) e enaltecer o ‘progresso’ a qualquer
preço, atropelando outras metas como equidade, justiça, bem estar social e
preservação ambiental.
Particularmente, prefiro ‘Solidariedade’,
‘Humanismo’, ‘Harmonia’ e ‘Paz’. O lema da Revolução Francesa, ‘Liberdade, Igualdade,
Fraternidade’ também é inspirador. Outros elegeriam ‘Deus, Pátria e Família’
(Deus me livre!) ou, quem sabe, ‘Ame-o ou Deixe-o’. Não, o melhor mesmo é não
ter palavra nenhuma e permitir que a mudez da bandeira fale por si.
Ao que consta, a inscrição ORDEM E
PROGRESSO foi inspirada na doutrina positivista que fazia a cabeça daqueles que
conduziram o processo que culminou com a proclamação da República, em especial a
elite das Forças Armadas. A expressão decorre de uma famosa citação de Auguste
Comte: “O Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim”.
Mas, pera lá! O lema de Comte
contemplava uma tríade composta por: ORDEM, PROGRESSO e AMOR. Só que os doutos
que conceberam nossa bandeira houveram por bem amputar o vocábulo AMOR. Não há
registros das razões que os levaram a abolir o sustentáculo que amparava a
totalidade do pensamento do filósofo, tornando manco o tripé que inspirou sua
citação.
Pelo que imagino, os iluminados militares
avaliaram que AMOR era ‘coisa de boiola’, não fica bem destacar-se no símbolo
pátrio, não combina com a ideia de orgulho cívico e virilidade que desejavam
transmitir. Atravessávamos um período de rupturas com o fim do império e da
escravidão. Melhor preparar a população para o enfrentamento do que para a conciliação.
Não teria sido uma boa recomendação incentivar um sentimento que levasse à
fraternidade, à união entre as pessoas e à extinção do confronto que sempre
inspirou a casta castrense. Assim, o amor foi mutilado da nossa bandeira.
Segundo minha interpretação pessoal
da máxima ‘comtiana’, a Ordem deve estar subjacente ao contexto social vigente
e o Progresso significa o desenvolvimento material decorrente. Porém é o amor
que deve nortear todas as ações. Sem ele, a sociedade deriva para um contexto
sem ética e descamba para uma situação de desarmonia social.
Acho que a supressão do amor explica
muito da mentalidade que forjou aqueles que se arvoram em defender nossa
pátria. É como se tivessem extraído a alma do nosso povo e semeado o desamor.
Num contexto em que a bandeira
brasileira, guiada pela Ordem e pelo Progresso (mas não pelo Amor) foi
apropriada por um grupo político e utilizada em movimentos golpistas, talvez
pudéssemos resgatar a frase original do pensador francês para nos guiar nesses
tempos de ódio e polarização.
Não se trata de uma mudança fortuita
ou oportunista, mas uma demanda necessária para expiar o pecado original que tantos
males vêm provocando. Já que utilizaram a bandeira para divulgar um pensamento
nobre, ao menos recuperem sua integralidade.
Se existe um sentimento que está
faltando hoje em nosso país é justamente o amor. “Só agora no século XXI é que
podemos ter uma ideia melhor da importância dessa palavra como catalisadora de
misericórdia, de caridade, de solidariedade entre as pessoas”, disse Eduardo Suplicy
(Fonte: Agência Senado) que, quando senador, lutou sem êxito para emplacar essa
pequena, mas tão significativa mudança em nossa bandeira.