domingo, 5 de fevereiro de 2023

SAMBA


O samba ainda vai nascer, o samba ainda não chegou (Caetano, Desde que o Samba é Samba)

O calvário a que foi submetido o cantor Seu Jorge para conseguir registrar o filho com seu nome predileto merece algumas reflexões. Ao que consta, ao oficial de plantão no cartório paulista, encarregado de atender a demanda do músico e sua companheira Karina, desagradou o nome ‘SAMBA’, proposto pelo requerente, por se tratar, segundo alegou, de um ‘ritmo musical’. Recorreu então à prerrogativa a ele conferida pelo artigo 55 da Lei 6015 de 1973, segundo o qual “o oficial de registro civil não registrará nomes suscetíveis de expor ao ridículo seus portadores”.

A ampla divulgação do caso pela imprensa e a decorrente intromissão de especialistas e fofoqueiros, sempre prontos a reverberar nas redes sociais qualquer detalhe da vida dos ‘famosos’, acabaram por expor a figura do pequeno Samba que, nem mesmo veio ao mundo, já se viu enredado num imbróglio jurídico.

A confusão, aliás, surgiu antes mesmo de o garoto vislumbrar a luz do sol pois a intenção do casal já fora aventada meses antes num programa de auditório da Globo, ocasião em que Sambinha ainda se encontrava no ventre da mãe, provocando um quiproquó de internautas elogiando ou criticando a escolha dos pais sobre o singular epíteto selecionado pelo cantor carioca.

A decisão de censurar o Samba foi corroborada pela responsável pelo cartório, Katia Cristina Silencio Possar, que sustentou que o prenome impugnado é ‘incomum’, não constando nenhum registro semelhante na base de dados consultada. Acrescentou a doutora que ao cartório é facultado vetar nomes pejorativos que possam levar crianças a sofrer bullying no futuro.

A nobre causídica, para amparar a negativa de seu subordinado anti-sambista, arrolou dois argumentos distintos como se fossem ‘um samba de uma nota só’. O primeiro é o de não terem sido identificadas inscrições pretéritas com a mesma grafia, afirmação que, por fundamentar-se no inescrutável banco oficial de registros do Estado de SP, torna-se irrefutável. Quanto ao segundo, o de preservar o jovem de eventuais situações vexatórias, a afirmação é no mínimo questionável. ‘Samba’ ainda que seja uma designação insólita, reveste-se de inegável sonoridade e enaltece seu detentor pela singularidade e originalidade. Não há razão para supor que alguém que, porventura venha a adotar essa alcunha, possa ser motivo de chacotas, muito ao contrário. Seu Jorge deveria sim ser admirado pela ousadia, pelo pioneirismo e por valorizar a cultura nacional. Quem sabe, aberto o precedente, em breve teremos uma profusão de Sambas no mercado de nomes. Talvez, inaugurando uma coqueluche, os cartórios sejam invadidos por uma miríade de ritmos musicais a nomear futuros cidadãos respeitáveis, tais como Ilmo. Sr. Bolero e a Exma. Sra. Valsa. Assim como há belos nomes derivados de personagens bíblicos, deuses, anjos e flores, por que não gêneros musicais?

É de se perguntar onde estavam a Sra. Silencio (cujo sobrenome leva a crer que não aprecia que ruídos na comunicação interfiram em suas deliberações) e seu diligente subordinado quando foram batizadas crianças com nomes esdrúxulos como Heliogábalo, Fologênio, Necrotério, Esparadrapo e Frankstefferson?

Se houve no passado essa complacência dos funcionários, baluartes da decência e dos bons costumes, por que agora essa implicância com um marco da cultura nacional? Não fosse um sujeito pacífico, Seu Jorge poderia retrucar o birrento cartorário dizendo: “Meu caro, quem não gosta de samba bom sujeito não é”.

Estaria uma instituição burocrática impessoal mais gabaritada a zelar pela felicidade dos cidadãos que os próprios pais? Tenho certeza de que Seu Jorge e Karina desejam um futuro radiante para seu filho. Que os princípios e a dedicação a ele transmitidos permitam-no enfrentar uma sociedade preconceituosa e racista. Faço votos que o adulto Samba possa ter orgulho não apenas da cor morena de sua pele como do emblemático nome que carrega, ambos afirmações de brasilidade. E tal como diz a famosa canção de Zé Kéti, possa bradar com orgulho: “Eu sou o Samba... quero mostrar ao mundo que tenho valor”.

No entanto, apesar de todas essas ponderações, pode acontecer que, por alguma razão, Samba não se sinta confortável com o nome amorosamente conferido a ele pelos pais. Talvez prefira ser Sam, Sandro, Sandoval, Godofredo ou Hildebrando. Ou, contrariando a predestinação presumida, pode ser que ele venha a se tornar um aficionado metaleiro adotando o cognome Ozzy. Seja feita a vossa vontade. Afinal é o titular da oferenda que deve sentir-se bem com ela. Não é certo carregar um estorvo para o resto da vida e sofrer desajustes emocionais por algo imposto à sua revelia. Para casos assim, a lei possibilita que se proceda alteração quando o indivíduo atingir o discernimento. Questão resolvida!

Essa situação expõe as contradições irreconciliáveis entre aqueles que navegam pelo mundo libertário das artes, plenos de ideias e inquietações e os que passam oito horas diárias atrás de uma escrivaninha batendo carimbos e reconhecendo firmas, representantes legais de uma sociedade conservadora, avessa a excentricidades.

Nomes exóticos de filhos de artistas não constituem casos raros. Muitos músicos escolhem nomes inusuais para seus rebentos como Sheeva, Kryptus, Zabelê, Krishna (filhos Pepeu e Baby do Brasil), Alegria, Preto e Mart’nália (de Martinho da Vila), Moreno (de Caetano Veloso), Mahal (de Luiz Melodia), Preta (de Gilberto Gil), Bena (de Edu Lobo), Amora (de Jorge Mautner), Anelis (de Itamar Assumpção), Vannick (de Belchior), Hope e Phoebe (de Herbert Vianna), Mano Wladimir (de Marisa Monte), Zyon (de Max Cavallera). Até que eu saiba todos se tornaram adultos saudáveis, bem sucedidos e sem traumas.

Irredutível em sua cruzada referente àquele que vai carregar seu DNA e possivelmente herdará uma veia artística, Seu Jorge reuniu com seu advogado sólidos argumentos demonstrando cabalmente que samba é um patrimônio da cultura nacional, orgulho dos brasileiros, enfatizando as raízes etimológicas do termo.

Face à documentação apresentada, à Dra. Silêncio não restou alternativa a não ser rever suas objeções: "Diante das razões apresentadas, que envolvem a preservação de vínculos africanos e de restauração cultural com suas origens, assim como o estudo de caso que mostrou a existência deste nome em outros países, formei meu convencimento pelo registro do nome escolhido, que foi lavrado no dia de hoje", diz a nota oficial. Ufa!

Vida longa ao Samba!