“O teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata, mulata, eu quero o teu amor” (Lamartine Babo, Irmãos Valença)
A marchinha de Carnaval
faz parte da história da música brasileira e, por mais surpreendente que pareça,
é mais antiga que o samba. Quando Donga registrou sua composição “Pelo
Telefone”, oficialmente considerado o primeiro samba da história, a marchinha “Ô
Abre Alas” (de 1899), de autoria da maestrina Chiquinha Gonzaga, já contava com
17 anos de idade!
A partir de 1920, o
ritmo reinou absoluto no Carnaval por quatro décadas. Apenas a partir da década
de 1960 foi destituído nos desfiles das escolas de samba pelo samba-enredo. Mais
recentemente, perdeu espaço também nos blocos de rua para o axé e canções
descartáveis que mal duram até a próxima estação.
Permanece, todavia, com
suas letras insolentes, divertidas e de fácil memorização, na lembrança de
todos. Traduz o espírito brincalhão do nosso povo. "A marchinha é um
gênero marcado pela crônica de época e pela malícia", diz o musicólogo
Ricardo Cravo Albin, autor do famoso dicionário musical que leva seu nome.
Devido a suas características
desaforadas, as marchinhas passaram a ser alvo da intolerância decorrente da
onda do politicamente correto que tem assolado nossa cultura. Outrora consideradas
ingênuas, agora vêm sendo banidas do repertório de diversos blocos carnavalescos
para não ferir o brio de grupos que se sentem oprimidos.
Rodrigo Faour,
pesquisador da MPB, desaprova: “Sou contra o patrulhamento excessivo em cima
das músicas de carnaval. Elas são um patrimônio brasileiro, não podemos botar
uma carga tão pesada em cima delas. Existem palavras que não são aceitas hoje,
mas, na época, eram faladas de maneira não pejorativa”. O
renomado antropólogo Roberto DaMatta acrescenta não ter sentido os
organizadores dos blocos alegarem que as músicas são discriminatórias: “A
maneira de pensar era diferente”.
Algumas mais recentes
trazem conotação sexual e de fato são um tanto preconceituosas, como é o caso
de “Cabeleira do Zezé”, “Maria Sapatão” e “A Pipa do Vovô”, disseminadas por Chacrinha
e Sílvio Santos.
O problema é que a perseguição
extravasou esse nicho de apresentadores televisivos capciosos e respingou em
compositores tradicionais como Haroldo Lobo, Braguinha, Ary Barroso e Noel Rosa,
nomes emblemáticos da cultura nacional, alcançados pelo crivo jacobinista destinado
a expurgar da arte de qualquer ranço de irreverência, numa cruzada moralizadora
semelhante à dos tempos do AI-5.
Sob acusação de racismo,
foram alvos centenas de canções que se referiam a ‘mulata’, palavra presumidamente
derivada de ‘mula’. Essa interpretação depreciativa não é consensual, havendo
uma corrente que sustenta que o vocábulo deriva do árabe ‘mowallad’ (filho de pai árabe com mãe de outra etnia).
Seja como for, é lícito
extirpar da linguagem um termo popularizado, sabendo-se que seu reiterado uso
coloquial consagrou uma nova conotação sem qualquer vínculo com a raiz
etimológica hipoteticamente espúria?
O cronista Ruy Castro
assim se manifesta: “Das dezenas de marchas que falam da ‘mulata’, muitas foram
compostas por Assis Valente, Wilson Baptista, Haroldo Lobo, Zé e Zilda, Haroldo
Barbosa, Monsueto etc. etc., e lançadas por cantores como Orlando Silva, Sílvio
Caldas, Aracy de Almeida, Carmen Costa, Cyro Monteiro, Moreira da Silva, Jorge
Veiga, Ângela Maria etc. etc. Todos mulatos. E não viam nenhum problema nisso.”
Nem o insuspeito
Caetano Veloso escapou de constar no Index
Prohibitorum por referir-se em sua música “Tropicália” aos “olhos verdes da
mulata”.
Mas a principal vítima
da cruzada foi a consagrada “O Teu Cabelo Não Nega”, a mais famosa composição
de Lamartine Babo, eleita pela Revista Veja a terceira maior marchinha de todos
os tempos.
Além do uso da condenada
palavra ‘mulata’, os atentos patrulheiros revisionistas se fixaram no verso
“mas como a cor não pega” (em que ‘pega’ teria o sentido de transmitir a
‘maldição’ da cor negra). O jornalista Tárik de Souza, um dos maiores
estudiosos da nossa música, rebate alegando que o ‘pega’ em questão mais
possivelmente significaria ‘importa’, o que conferiria ao verso uma acepção
antirracista, ao contrário do que propalam seus críticos. De fato, não parece razoável
supor que, com seu fino humor, Lamartine externasse receio de ser ‘contaminado’
pela cor da mulata que tanto exaltava.
Um país tão pobre de
referências culturais não pode se dar ao luxo de submeter seus ídolos
consagrados a práticas inquisitoriais, sob o discutível pretexto de reparar
eventuais injustiças históricas.
“A volta da censura,
mesmo que por razões consideradas nobres, é algo assustador. O carnaval tem
sempre um sentido anárquico e caricatural”, arremata Tárik.
Longa vida à marchinha!
(Adaptado do meu original MARCHA À RÉ,
publicado em fevereiro de 2021)
6 comentários:
Bravíssimo
Mais uma bela crônica; muito bem colocado, eu tb não vejo "maldade", nem preconceito nas letras dessas marchinhas. Na época em que foram compostas soavam inteiramente normais, engraçadas, alegres, muito apropriadas para os festejos do Momo.
100% de acordo.
Muito bem! 100% de acordo.
Muito bom! concordo em 100%
Muito bom! Concordo em 100%.
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