Sempre que tomo o metrô linha verde na Avenida Paulista
e, involuntariamente, coloco os olhos sobre o rosário dos nomes de estações,
pintados sobre as portas de acesso, para facilitar a localização dos usuários,
percebo que um deles se destaca pelo tamanho despropositadamente extenso. É uma
quantidade exageradamente grande de letras, agrupadas num pequeno espaço, ao
contrário dos títulos das demais estações, normalmente batizadas com nomes
curtos e diretos. Trata-se da estação ‘Sumaré – Santuário Nossa Senhora de
Fátima’. É tanta letra para tão pouca estação que tiveram de reduzir o seu
tamanho (da letra, não da estação), para não engolir nenhuma delas e cometer o
sacrilégio de expressar o nome santificado sem a integralidade necessária de
que está imbuído por direito canônico.
Tal santuário, a bem da verdade, sequer está situado ao
lado da referida estação, e sim a uns trezentos metros de sua saída.
Eu nutria bastante simpatia por essa igreja, localizada
em um ponto tranquilo e agradável da Av. Dr. Arnaldo. É uma região alta,
facilmente identificável no horizonte distante, não pelas cruzes, mas pelas
gigantescas e, à noite, iluminadas antenas de transmissão de TVs e rádios, que
se digladiam, com suas torres afiadas e longilíneas, para ocupar os escassos
terrenos disponíveis naquele restrito e valorizado espaço de São Paulo, na
ponta da região planáltica do Espigão da Paulista.
A igreja, com sua serenidade atemporal, cercada de
enormes e frondosas árvores centenárias, serve ali como poder moderador para
tanta antena. Exala pelos ares eletromagnéticos da paulicéia, em contraste com
as impuras ondas carregadas de sordidez e cretinice, um pouco de paz e
santidade, das quais essa urbe, desfigurada pelo desdém e pela violência, anda
tão carente.
Todavia, meu sentimento de devoção, laico no conteúdo
mas cristão na essência, foi repentinamente substituído por outro, malévolo e
eivado de indignação, ao conjecturar sobre as possíveis razões que fizeram esse
templo ser aquinhoado com tamanha deferência do poder público, a ponto de
ganhar essa oferenda especialíssima de destaque nas placas de trem urbano, sem
qualquer argumento plausível que a justificasse.
Ao que imagino, milhares de mapas e placas indicativas
do Metrô, espalhadas por toda a rede, tiveram que passar por uma redentora e
imaculada raspagem, custeada com dinheiro público, que substituísse o prosaico
e simpático nome de Sumaré (que antes vigorava) pelo prolixo nome estendido ‘Sumaré
– Santuário Nossa Senhora de Fátima’, agregando às seis suficientes letras
do bairro servido pela estação outras vinte e tantas concernentes ao santuário
encravado em meio a suas quebradas.
Temos aqui um caso em que o detalhe sobrepôs-se ao
principal. A parte englobou o todo, sextuplicando seu tamanho. A robusta
corpulência do nome da igreja fez quase que afundar o ‘sumário’ Sumaré,
que, por sua tradição e pela vasta extensão de seus domínios, deveria se
bastar.
Certamente, a população usuária do sistema, indiferente
à mudança, urdida em algum gabinete oficial, continuará sabiamente a usar o
nome original de ‘Sumaré’, movida não por um sentimento herético ou
revanchista, mas apenas fazendo prevalecer a simplicidade e a redução
coloquial, alheia à inapropriada homenagem que vingou por pressão de políticos
ou de alguns clérigos que se pretendem deuses.
Pergunto aos céus a razão de tão distinta homenagem. Quem
sabe a própria Virgem possa dar-me a dádiva da aparição, num sonho, para
revelar-me por que a igreja a ela dedicada no bairro do Sumaré tem ascendência
midiática sobre as demais, algo que não condiz com a atitude despojada e
modesta que permeou sua vida.
Se o terceiro dos dez mandamentos de Deus já determina
que não se use o Seu nome em vão, o mesmo preceito deveria ser aplicado,
imagino, à sua mãe, que certamente preferiria que seu santo nome habitasse o
âmago dos corações puros a ostentar, por imposição, placas indicativas de transportes
urbanos.
Por que os filhos de Maomé, Moisés, Buda, Oxalá, Krishna,
os politeístas, os agnósticos, os ateus e até os adoradores de Satanás (que
pelos contraditórios preceitos divinos, também devem ser considerados filhos de
Deus), os quais dividem democrática e ecumenicamente o mesmo concorrido espaço
no Metrô, têm obrigação de saber que próximo à estação Sumaré está a tal
paróquia católica? Seria ela miraculosa ou teria alguma condição universal ou
supra-religiosa qualquer que a fizesse sobressair-se às demais? Ou talvez seja
parte de uma cruzada para catequizar à força os infiéis através da propagação
da palavra de Deus, extravasada dos templos e programas pagos de TV para
letreiros, placas e painéis públicos.
Outra possibilidade, mais plausível, é que alguém influente
tenha se aproveitado do cargo que ocupa ou ocupou no governo empossado por
quatro anos, e da autoridade que lhe foi conferida nesse período, para prestar
homenagem à santa madre, por alguma graça atendida.
Esta manobra temporal eternizou-se já que nenhum político
com mandado posterior teria ou terá coragem de afrontar o santo nome estampado
e toda a comunidade religiosa que o reverencia, revertendo mundanamente a
mudança, por decreto, imortalizada.
Só assim posso entender por que o breve, despretensioso
e laico nome de Sumaré, que me parecia até então perfeito e suficiente para
batizar aquela estação tenha sido desbancado.
Sendo um país onde, em obediência a norma constitucional,
a liberdade de culto é democraticamente a todos facultada, os templos de
outras religiões terão o direito de reivindicar a adoção também de uma estação
de metrô. Mesmo dentro da própria igreja católica, talvez ecloda uma disputa
conciliar para fazer vingar esse ou aquele templo.
Para resolver essa pendenga sem provocar um cisma
urbano-eclesiástico, só inundando a cidade de estações de metrô para abarcar
todas as lícitas reivindicações que poderiam eclodir. Talvez seja uma rara
oportunidade para, não havendo recursos suficientes para triplicar a malha
metroviária, ao menos, triplicar o número de estações, reduzindo para uns
duzentos metros a distância média entre elas. Assim, haveria estações para
todos os gostos e credos, acolhendo a paridade e a disparidade religiosa.
(continua...)
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