A acalorada
discussão em torno do êxodo de médicos cubanos é um exemplo infeliz de como o
clima de debate ideológico que tomou conta do país contamina até programas de
governo que mereciam uma análise isenta e menos apaixonada.
Antes mesmo
de assumir, o presidente eleito já coloca contra a parede o Programa Mais
Médicos, ao provocar a retirada de 8 mil profissionais de saúde cubanos (contingente
que corresponde à quase metade das vagas), sob a alegação de que não dispõem da
comprovada qualificação, de que se encontram sob “regime escravo” e de que
estão a serviço de uma ditadura comunista.
O assunto
divide opiniões de dois campos antagônicos. Para os militantes da esquerda
tradicional, Cuba é a materialidade de uma forma icônica de governo irretocável
e endeusado. Em eminentes debates sociológicos em restaurantes franceses, regados
a ‘Chateau’, enaltecem a superioridade inquestionável do regime político
igualitário. A falta de liberdade e a prisão de opositores naturalmente ficam
de fora do cardápio. Os médicos cubanos são saudados como guardiões do éden
socialista.
Para a
direita, o programa, por ter sido instituído durante a gestão Dilma e por
abranger profissionais originários da execrável pátria de Fidel, padece de um pecado
original irreparável. Os suspeitos ‘doutores’ seriam na verdade perigosos agentes
infiltrados dedicados a expandir os tentáculos do comunismo internacional.
Em meio a
esse transcendente embate epistêmico-doutrinário, submeto às partes litigantes uma
banal questão funcional: “O Mais Médicos está dando certo?” Não sou
especialista mas pelo que tenho lido, os resultados têm sido bons. Se não por
outra razão, uma oportunidade ímpar de levar profissionais da saúde a regiões carentes.
Legiões de
médicos cubanos estão diligentemente cumprindo a missão de promover assistência
a tais áreas, propiciando êxito ao programa. Seu objetivo não é fomentar
doutrinação marxista. Essa função já é exercida nas universidades públicas cujos
estudantes promovem passeatas, ocupações e colocam a ‘resistência democrática contra
o fascismo’ como pauta preferencial à formação acadêmica. Os coitados cubanos emigram
ao Brasil com um objetivo bem mais despretensioso (mas não menos ‘revolucionário’):
prestar auxílio médico a pessoas necessitadas. Não prescrevem panfletos mas
apenas receitas de medicamentos e xaropes. São módicos médicos.
Por mais que
detestemos admitir, a medicina cubana é bastante avançada, e sua excelência é internacionalmente
reconhecida, até pela OMS. Deveria ser um privilégio contar com pessoas com boa
formação prestando auxílio suplementar a um país que conta com um médico para
cada 500 habitantes.
Considere-se
ainda que tais profissionais, em troca de um salário de 11 mil reais, são conduzidos
aos mais longínquos rincões, os quais nossos ‘filhinhos de papai’, formados nas
boas faculdades de medicina, recusam-se a atender, preferindo cuidar de madames
hipocondríacas nas regiões nobres das grandes cidades.
Afirmar, como
fez nosso futuro presidente, que se trata de trabalho escravo parece-me um contrassenso
partindo de quem já declarou que o trabalhador brasileiro tem excesso de direitos.
Tampouco é razoável
a contestação de que o governo cubano fica com 70% da verba revertida, em função
da política de distribuição de renda do sistema socialista. O questionamento a
esse repasse é ingerência em assuntos internos de uma nação independente com
regime político distinto do nosso. Posição incoerente para quem reclamava justamente
que os governos do PT pautavam ‘suas relações internacionais pela afinidade
ideológica não pelos interesses do país’.
Por fim, a
acusação de que os médicos não têm certificação é tolice. O edital exige a
formação e o diploma do contratado. Além disso, em 6 anos de vigência do
programa com milhares de profissionais atuantes, não se tem notícia de um caso notório
sequer envolvendo negligência ou falta grave no atendimento. Deveríamos nos
preocupar isso sim com os recorrentes casos de pessoas não habilitadas
praticando cirurgias plásticas mal sucedidas em dondocas narcisistas ou com as
centenas de casos de pacientes esquecidos em filas de espera de hospitais
públicos, à espera de médicos displicentes que não cumprem o horário.
O programa
Mais Médicos tem atendido com louvor aos propósitos dos países signatários.
Serve a Cuba que tem a possibilidade de empregar profissionais formados em suas
faculdades de medicina, obtendo uma remuneração adequada para os padrões daquele
país. E serve ao Brasil que consegue oferecer serviços de saúde a populações
abandonadas pelo poder público. Não há qualquer razão plausível para romper
esse acordo, benéfico a ambas as partes.
28 milhões de
brasileiros serão prejudicados pela decisão da saída dos médicos. São pessoas
simples de comunidades afastadas que sentirão saudades dos cubanos. Não sabem onde fica o Caribe e não entendem
nada de política. Talvez comecem a pensar a respeito.
O nosso Trump
tupiniquim parece nutrir um ódio irracional por tudo o que provenha de Cuba, a
exemplo do irascível mandatário norte-americano que venera. Talvez pudesse concretizar
outro devaneio do seu ídolo ianque e construir também um muro na fronteira com
a Venezuela. Ou, melhor ainda, pelos 16 mil km de fronteira terrestre,
impedindo assim a entrada de drogas, armas, cigarros e comunismo. Dotado de um
complexo de superioridade em relação a nossos parceiros latino-americanos, e
preocupado em macaquear a postura isolacionista do presidente americano (cujo
interesse pelo Brasil e qualquer território abaixo do Texas, é zero), parece extasiado
em cortar os laços históricos com nossos vizinhos hermanos.
Talvez fizesse
melhor se, ao invés de provocar a saída de humildes profissionais que estão exercendo
uma relevante função social, empenhasse-se em nos livrar dos nobres políticos e
juízes cuja ausência ninguém iria notar, a não ser pela melhora na situação das
contas públicas.
Somos vítimas
de uma incurável epidemia de insensatez. Deve haver realmente algo muito doente
nesse país miserável que assiste impotente à evasão de milhares de cérebros
privilegiados em busca de melhores condições de trabalho no exterior, enquanto
abre mão dos serviços de mais de 8 mil médicos.