sábado, 17 de novembro de 2018

MENOS MÉDICOS




A acalorada discussão em torno do êxodo de médicos cubanos é um exemplo infeliz de como o clima de debate ideológico que tomou conta do país contamina até programas de governo que mereciam uma análise isenta e menos apaixonada.

Antes mesmo de assumir, o presidente eleito já coloca contra a parede o Programa Mais Médicos, ao provocar a retirada de 8 mil profissionais de saúde cubanos (contingente que corresponde à quase metade das vagas), sob a alegação de que não dispõem da comprovada qualificação, de que se encontram sob “regime escravo” e de que estão a serviço de uma ditadura comunista.

O assunto divide opiniões de dois campos antagônicos. Para os militantes da esquerda tradicional, Cuba é a materialidade de uma forma icônica de governo irretocável e endeusado. Em eminentes debates sociológicos em restaurantes franceses, regados a ‘Chateau’, enaltecem a superioridade inquestionável do regime político igualitário. A falta de liberdade e a prisão de opositores naturalmente ficam de fora do cardápio. Os médicos cubanos são saudados como guardiões do éden socialista.

Para a direita, o programa, por ter sido instituído durante a gestão Dilma e por abranger profissionais originários da execrável pátria de Fidel, padece de um pecado original irreparável. Os suspeitos ‘doutores’ seriam na verdade perigosos agentes infiltrados dedicados a expandir os tentáculos do comunismo internacional.

Em meio a esse transcendente embate epistêmico-doutrinário, submeto às partes litigantes uma banal questão funcional: “O Mais Médicos está dando certo?” Não sou especialista mas pelo que tenho lido, os resultados têm sido bons. Se não por outra razão, uma oportunidade ímpar de levar profissionais da saúde a regiões carentes.

Legiões de médicos cubanos estão diligentemente cumprindo a missão de promover assistência a tais áreas, propiciando êxito ao programa. Seu objetivo não é fomentar doutrinação marxista. Essa função já é exercida nas universidades públicas cujos estudantes promovem passeatas, ocupações e colocam a ‘resistência democrática contra o fascismo’ como pauta preferencial à formação acadêmica. Os coitados cubanos emigram ao Brasil com um objetivo bem mais despretensioso (mas não menos ‘revolucionário’): prestar auxílio médico a pessoas necessitadas. Não prescrevem panfletos mas apenas receitas de medicamentos e xaropes. São módicos médicos.

Por mais que detestemos admitir, a medicina cubana é bastante avançada, e sua excelência é internacionalmente reconhecida, até pela OMS. Deveria ser um privilégio contar com pessoas com boa formação prestando auxílio suplementar a um país que conta com um médico para cada 500 habitantes.

Considere-se ainda que tais profissionais, em troca de um salário de 11 mil reais, são conduzidos aos mais longínquos rincões, os quais nossos ‘filhinhos de papai’, formados nas boas faculdades de medicina, recusam-se a atender, preferindo cuidar de madames hipocondríacas nas regiões nobres das grandes cidades.

Afirmar, como fez nosso futuro presidente, que se trata de trabalho escravo parece-me um contrassenso partindo de quem já declarou que o trabalhador brasileiro tem excesso de direitos.

Tampouco é razoável a contestação de que o governo cubano fica com 70% da verba revertida, em função da política de distribuição de renda do sistema socialista. O questionamento a esse repasse é ingerência em assuntos internos de uma nação independente com regime político distinto do nosso. Posição incoerente para quem reclamava justamente que os governos do PT pautavam ‘suas relações internacionais pela afinidade ideológica não pelos interesses do país’.

Por fim, a acusação de que os médicos não têm certificação é tolice. O edital exige a formação e o diploma do contratado. Além disso, em 6 anos de vigência do programa com milhares de profissionais atuantes, não se tem notícia de um caso notório sequer envolvendo negligência ou falta grave no atendimento. Deveríamos nos preocupar isso sim com os recorrentes casos de pessoas não habilitadas praticando cirurgias plásticas mal sucedidas em dondocas narcisistas ou com as centenas de casos de pacientes esquecidos em filas de espera de hospitais públicos, à espera de médicos displicentes que não cumprem o horário.

O programa Mais Médicos tem atendido com louvor aos propósitos dos países signatários. Serve a Cuba que tem a possibilidade de empregar profissionais formados em suas faculdades de medicina, obtendo uma remuneração adequada para os padrões daquele país. E serve ao Brasil que consegue oferecer serviços de saúde a populações abandonadas pelo poder público. Não há qualquer razão plausível para romper esse acordo, benéfico a ambas as partes.

28 milhões de brasileiros serão prejudicados pela decisão da saída dos médicos. São pessoas simples de comunidades afastadas que sentirão saudades dos cubanos.  Não sabem onde fica o Caribe e não entendem nada de política. Talvez comecem a pensar a respeito.

O nosso Trump tupiniquim parece nutrir um ódio irracional por tudo o que provenha de Cuba, a exemplo do irascível mandatário norte-americano que venera. Talvez pudesse concretizar outro devaneio do seu ídolo ianque e construir também um muro na fronteira com a Venezuela. Ou, melhor ainda, pelos 16 mil km de fronteira terrestre, impedindo assim a entrada de drogas, armas, cigarros e comunismo. Dotado de um complexo de superioridade em relação a nossos parceiros latino-americanos, e preocupado em macaquear a postura isolacionista do presidente americano (cujo interesse pelo Brasil e qualquer território abaixo do Texas, é zero), parece extasiado em cortar os laços históricos com nossos vizinhos hermanos.

Talvez fizesse melhor se, ao invés de provocar a saída de humildes profissionais que estão exercendo uma relevante função social, empenhasse-se em nos livrar dos nobres políticos e juízes cuja ausência ninguém iria notar, a não ser pela melhora na situação das contas públicas.

Somos vítimas de uma incurável epidemia de insensatez. Deve haver realmente algo muito doente nesse país miserável que assiste impotente à evasão de milhares de cérebros privilegiados em busca de melhores condições de trabalho no exterior, enquanto abre mão dos serviços de mais de 8 mil médicos.


Um comentário:

Unknown disse...

Este seu texto, deveria circular mais.. excelente, de preferência cair nas mãos dos BOSSAL NARO. Ianque Tupininquim (ótima) do dicas narcisistas idem. forte abraço 🤗