segunda-feira, 27 de setembro de 2021

AMIGO GRINGO

 
“Pede perdão pela duração dessa temporada, mas não diga nada que me viu chorando” (Chico Buarque)

 Gringo,

Sorry, brother, entendemos sua indignação. Não nos julgue por aqueles caras sem noção, sem classe e sem máscara que você viu comendo pizza fria e vagabundeando como párias pelas ruas de Nova York. Eles queriam passar um recado para as delegações dos outros países, tipo: “Não estamos nem aí com o seu vírus, suas vacinas, suas medidas de proteção e seus protocolos sanitários de m(*)”.

No fundo, gringo, você sabe que não somos assim. Nosso DNA tem uma tipologia bem diferente. Ok, problemas sempre existiram, mas quem não os tem? Miséria crônica, desigualdade social, governantes deploráveis... Mesmo assim, nunca deixávamos de estampar no semblante um sorrisinho maroto de orgulho por nossa extravagância charmosa, uma postura de altivez e insubmissão. Por trás da curiosidade a nosso respeito, vocês, ianques, olhavam pra gente com uma pitada de inveja por sermos parte de uma inextricável e fascinante realidade paralela, longe deste insensato mundo óbvio e previsível.

Somos sim, excêntricos... mas não somos idiotas. Aqueles pobres diabos, se esgueirando furtivos como ratos de esgoto e expondo sua arrogância e sua ignorância para chacota internacional não nos representam de verdade.

Nossas boas referências permanecem vivas em sua memória: o samba, o frevo, a bossa nova, Carmen Miranda, Tom Jobim. A garota de Ipanema, o corpo escultural da soberba mulata e da galera dourada do surf. Uma bem sucedida miscigenação de etnias que deu origem ao mais formoso exemplar terráqueo disponível no mercado.

E tem a negra baiana, carregada de penduricalhos, amuletos e balangandãs, que simbolizam os costumes, as crenças e tradições repletos de segredos místicos protegidos pelos orixás nos terreiros de umbanda e candomblé.

Uma diversificada culinária, repleta de temperos e sabores exóticos que agregou elementos díspares das mais diversas fontes.

Os dribles desconcertantes de Pelé e o gingado de Garrincha que produziram o futebol-arte que encantava o mundo.

Uma energia catártica que levava multidões em blocos às ruas para dançar e celebrar a alegria de viver.

As praias embasbacantes, as paisagens paradisíacas e o mais arrebatador conjunto de belezas naturais encontráveis dentro dos limites de uma fronteira, que faziam babar turistas e aventureiros de todo canto que aqui acorriam em busca do éden perdido.

Esse é o verdadeiro Brasil, gringo, “um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.

E há muito mais que você não vê, gringo. Nossas selvas, campeãs em biodiversidade, que abrigam segredos vegetais inexplorados com propriedades mágicas ainda desconhecidas pela ciência, aplicadas por curandeiros e xamãs dos povos originários, legítimos senhores da ‘terra brasilis’.

Uma cultura ameaçada de extinção que guarda conhecimentos milenares, possui o dom de saber conviver harmonicamente com o meio ambiente, cultua a liberdade e a felicidade, mercadorias escassas em nossa sociedade utilitarista, voltada para os bens materiais.

Somos o país das vastas matas exuberantes, dos rios caudalosos, que parecem oceanos de água doce e cristalina, da multiplicidade de espécies animais e vegetais, da abundância de frutas nativas. Uma explosão multicolorida em louvor à vida que você, gringo, não vai encontrar em nenhum outro recanto.

Todo esse tesouro, hoje dilapidado impiedosamente por ruralistas, garimpeiros, grileiros e madeireiros.

Somos (ou éramos) a última esperança de resgatar o planeta da hecatombe ambiental, derradeiros guardiães das florestas regeneradoras do equilíbrio climático que possibilita a existência da vida na Terra.

Estamos perdendo essa privilegiada condição estratégica em troca das migalhas apropriadas por meia dúzia de trogloditas do agronegócio que saqueiam da natureza todas suas dádivas, sem oferecer nada em troca.

Encontramo-nos hoje na rabeira da humanidade, liderando o ranking do atraso, ao lado do malvisto grupo das nações que, na contramão da sustentabilidade, mais promovem a destruição do meio-ambiente. Em poucos anos, retrocedemos de Shangri-lá para vilões do planeta. O mundo todo nos olha com um misto de compaixão e revolta.

Passamos a ser reconhecidos como território livre das queimadas, da devastação, da intolerância, da violência, do genocídio, do descaso. Há não muito tempo éramos tidos como a terra da camaradagem, da simpatia, da alegria, da receptividade, do bom humor.

Por sorte, conservamos outra das nossas características: a esperança. Esperança de dar a volta por cima, mesmo quando o quadro está desolador. Esperança de que nossa preciosa essência persistirá e fará florescer um porvir promissor quando passar essa era de escuridão.

Pois no âmago, por trás da calmaria do conformismo, pulsa um país que fervilha vitalidade. E que não vai se subordinar aos brucutus que querem nos implantar uma tirania calcada no ódio e na violência. Os panacas que agora nos apequenam perante o mundo serão varridos pelos frescos ares de mudança.

Dizem que a índole zombeteira do brasileiro vai salvar o mundo do apocalipse civilizatório, estabelecendo oficialmente a descontração universal e instituindo a alegria plena, geral e irrestrita, através do seu espírito carnavalesco. Afinal, somos a reserva do bom humor desse planeta cáustico movido pela grana em direção ao cataclismo.

Verdade que esse peculiar povo carrega também um lado sombrio até então desconhecido, que acolheu, talvez por ingenuidade, ideias horripilantes propaladas por milicianos prepotentes. E alçou-as ao poder, num lance incompreensível de cegueira.

Enfim, cada um carrega sua própria cruz. Essa é a nossa e havemos de superar essa tragédia.

Então, pare de nos olhar com essa cara de desprezo e deboche, gringo.

Tá reclamando do quê? Vocês também não elegeram o Trump?

 

 

 

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

MALDITO IPÊ AMARELO


Dia desses, acordei desagradavelmente surpreendido, ao avistar pela janela um objeto estranho sublevar-se na paisagem urbana a que estou habituado a contemplar pelas manhãs. Em meio à monocórdica retitude dos edifícios cheios de sacadas, num cenário perfeitamente simétrico, ornado com veículos, postes, bueiros, muros, grades, fios elétricos, guindastes, betoneiras, tapumes, andaimes e fumaça, eis que se sobressai ao pálido grafite, uma intrusa árvore carregada de flores... amarelas.

Que significa isso agora? Só me faltava essa... Não podemos nos assentar sossegados por um segundo na sepulcral paz matinal costumeira, apreciando o turvo panorama carregado de monóxido de carbono e dióxido de enxofre, sem sermos agredidos por grotescas manifestações festeiras desse meio-ambiente rebelde.

A natureza parece não conhecer limites, não tem consciência de seu lugar. Não bastassem as vastas áreas em parques, reservas e na Amazônia em que foi devidamente alojada, ocupando espaços que deveriam ser usados para plantar soja e criar gado, agora temos que aturar resquícios florestais a invadir as calçadas das cidades com esse amarelão cafona, tão vivaz que parece saltar pra fora da imagem.

Ao chegar essa estação, a coisa se espalha como praga por tudo quanto é canto. Num irritante ciclo que se repete anualmente, somos obrigados a conviver por dias com essas abusadas plantas floridas, afrontando a paisagem e escancarando aos olhos suas espalhafatosas tonalidades.

Ainda por cima, atraem pássaros barulhentos e legiões de abelhas, lagartas entre outros insetos asquerosos que ameaçam nosso estéril habitat em apartamentos dedetizados e shoppings higienizados.

Quem lhes dá o direito de subverter a paisagem construída por nossa asséptica civilização? Quem foram os imbecis que as plantaram, subtraindo preciosos metros quadrados do passeio público? E as autoridades municipais, onde estão, que não tomam as necessárias providências coercitivas?

Ao invés de ficar poluindo visualmente nosso espaço urbano, poderiam ceder suas madeiras para as fábricas de móveis e pisos, estabilizando os preços dessa matéria-prima tão escassa em nosso mercado de construção civil. Ao invés disso, deixam-nas viver impunemente.

Até o nome soa patético, “ipê”, expressão tupi, herança maldita do tempo em que os selvagens conspurcaram nossa sociedade com seus valores retrógrados. Que eu saiba, esse vocábulo estridente inexiste em inglês ou qualquer idioma civilizado. Língua de índio. É palavra típica desse ‘paiseco’ atrasado. Faz parte da nossa ridícula cultura terceiro-mundista, maculada com influências espúrias de africanos e silvícolas, acostumados a viver descalços e seminus no mato.

Por sorte, esse abuso durou pouco. Após emporcalhar o concreto com suas pétalas, a árvore ficou desnuda e passou a exibir apenas galhos esquálidos, com aparência cadavérica, em harmonia com seu entorno. As coisas retomaram a normalidade. Poderei voltar a acordar sem sobressaltos apreciando o maravilhoso acinzentado que dá significado a minha insípida existência.

Sem folhas, sem flores, sem cores, sem amores, sem indigestos ipês amarelos.