Dia desses, acordei desagradavelmente surpreendido, ao avistar pela janela um objeto estranho sublevar-se na paisagem urbana a que estou habituado a contemplar pelas manhãs. Em meio à monocórdica retitude dos edifícios cheios de sacadas, num cenário perfeitamente simétrico, ornado com veículos, postes, bueiros, muros, grades, fios elétricos, guindastes, betoneiras, tapumes, andaimes e fumaça, eis que se sobressai ao pálido grafite, uma intrusa árvore carregada de flores... amarelas.
Que significa isso
agora? Só me faltava essa... Não podemos nos assentar sossegados por um segundo
na sepulcral paz matinal costumeira, apreciando o turvo panorama carregado de
monóxido de carbono e dióxido de enxofre, sem sermos agredidos por grotescas
manifestações festeiras desse meio-ambiente rebelde.
A natureza parece não conhecer
limites, não tem consciência de seu lugar. Não bastassem as vastas áreas em parques,
reservas e na Amazônia em que foi devidamente alojada, ocupando espaços que deveriam
ser usados para plantar soja e criar gado, agora temos que aturar resquícios florestais
a invadir as calçadas das cidades com esse amarelão cafona, tão vivaz que
parece saltar pra fora da imagem.
Ao chegar essa estação,
a coisa se espalha como praga por tudo quanto é canto. Num irritante ciclo que
se repete anualmente, somos obrigados a conviver por dias com essas abusadas plantas
floridas, afrontando a paisagem e escancarando aos olhos suas espalhafatosas tonalidades.
Ainda por cima, atraem
pássaros barulhentos e legiões de abelhas, lagartas entre outros insetos
asquerosos que ameaçam nosso estéril habitat em apartamentos dedetizados e
shoppings higienizados.
Quem lhes dá o direito
de subverter a paisagem construída por nossa asséptica civilização? Quem foram
os imbecis que as plantaram, subtraindo preciosos metros quadrados do passeio
público? E as autoridades municipais, onde estão, que não tomam as necessárias
providências coercitivas?
Ao invés de ficar
poluindo visualmente nosso espaço urbano, poderiam ceder suas madeiras para as
fábricas de móveis e pisos, estabilizando os preços dessa matéria-prima tão
escassa em nosso mercado de construção civil. Ao invés disso, deixam-nas viver
impunemente.
Até o nome soa
patético, “ipê”, expressão tupi, herança maldita do tempo em que os selvagens conspurcaram
nossa sociedade com seus valores retrógrados. Que eu saiba, esse vocábulo
estridente inexiste em inglês ou qualquer idioma civilizado. Língua de índio. É
palavra típica desse ‘paiseco’ atrasado. Faz parte da nossa ridícula cultura
terceiro-mundista, maculada com influências espúrias de africanos e silvícolas,
acostumados a viver descalços e seminus no mato.
Por sorte, esse abuso
durou pouco. Após emporcalhar o concreto com suas pétalas, a árvore ficou desnuda
e passou a exibir apenas galhos esquálidos, com aparência cadavérica, em
harmonia com seu entorno. As coisas retomaram a normalidade. Poderei voltar a
acordar sem sobressaltos apreciando o maravilhoso acinzentado que dá
significado a minha insípida existência.
Sem folhas, sem flores,
sem cores, sem amores, sem indigestos ipês amarelos.
7 comentários:
Perfeito,combinou com uma notícia hoje pela manhã. Paulistanos reclamando que os sabiás estão cantando muito cedo. Os coitadinhos precisam do canto para acasalar e com o barulho dos humanos,só de madrugada a amada ouvirá seu pretendente
Para evitar que não surjam dúvidas quando essa leitura cair nos olhos de "alguns", sugiro que vc acrescente ao título (entre parênteses) o aviso de que "CONTÉM IRONIA"...
Bravo!
Lindo Ipê que dá mais diversidade às cores da cidade. Isso aí, sem as folhas, as flores, as cores, os amores, fica sem graça, fica indigesto. Grande Sérgio.
Muito bom! A cara de São Paulo.
“Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.”
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Postar um comentário