domingo, 31 de outubro de 2021

COLÔNIA LISTA

 

A conceituada revista Rolling Stone publicou recentemente sua lista de 500 melhores canções de todos os tempos (grifo nosso).

Aparecem na lista Cardi B, Carly Rae Jepsen, UGK, Weeknd, Lizzo, Migos, DMX, Megan Thee Stallion, Craig Mack, Childish Gambino, BTS, Clipse, Queen Pen, Big Star, Pusha T, Lil Nas X, Bad Bunny, Mark Ronson, CL Smooth, Funky 4+1 e Juvenille. Já ouviu falar em algum deles?

Esses ilustres desconhecidos são, em sua maioria, artistas que bombaram nas plataformas de streaming, e sua escolha deveu-se não a critérios qualitativos, mas em função dos milhões de downloads em celulares e ipads. Em breve, estarão mofando nas nuvens do esquecimento assim que forem largados à sua irrelevância.

Em compensação, músicos de diversos gêneros e renomado prestígio não fizeram jus a uma indicaçãozinha sequer. Ficaram de fora dentre outros, Frank Sinatra, Tony Bennett, Al Jarreau, Sarah Vaughn, Nat King Cole, Quincy Jones, Diana Krall, Barbra Streisand, Carpenters, Janis Joplin, Joan Baez, Sting, Tom Waits, Bjork, Annie Lennox, Cranberries, Lenny Kravitz, Jamiroquai, Massive Attack, Moby, Manu Chao e Arctic Monkeys.

Não é preciso ser especialista em música para constatar há algo de errado. Que parâmetros teriam sido usados para reputar ídolos do pop descartável como Rihanna e Ariana Grande como superiores a um Tom Jobim ou um Burt Bacharach?

E o que dizer de canções que atravessaram gerações e se eternizaram no imaginário popular como “Moonlight Serenade”, “As Time Goes By”, “Over the Rainbow”, “Smoke Gets in Your Eyes”, “Moon River”, “Take Five”, “Summertime”, “Stella by Starlight”, “My Funny Valentine”, “Misty”, “Autumn Leaves”, “Ne me Quitte Pas”, “La Vie en Rose”, “Volare”, “Besame Mucho”, “Guantanamera”? Nenhuma foi lembrada. Por serem músicas ‘de tiozão’, não mereceram a atenção dos iluminados idealizadores do famigerado guia da RS.

Em seu lugar, entraram coisas tipo “Fuck the Police”, “Gasolina”, “Toxic”, “In Da Club”, “Da Doo Ron Ron”, “Yeah”, “Hey Ya”, “Bam Bam” e “Big Poppa” .

O rock não teve melhor sorte. Foram sumariamente vetadas bandas de primeira linha como Deep Purple, Iron Maiden, Dire Straits, Genesis, Yes, Jethro Tull, Emerson Lake & Palmer, Supertramp, Echo & Bunnymen, Siouxsie & Banshees e os ex-Beatles Paul McCartney e George Harrison. Foram preteridos por uma simples razão: são todos ingleses. Fossem da terra de tio Sam, não fariam jus a tamanha desfeita provinda de uma publicação que nasceu e cresceu vinculada a esse gênero musical e agora cospe no prato em que comeu.

Por outro lado, abundaram indicações de gangsta rap, hip hop e country music (equivalente ao nosso sertanejo), estilo cujo alcance está restrito ao território americano.

Nada contra. Não se trata de discriminar determinados gêneros musicais. A questão é que um levantamento que se propõe a ser um painel da produção musical representativa da história deveria com isenção abrir espaço ao que é produzido em todas as épocas e lugares, segundo sua relevância artística.

Ou então que se definam com clareza as limitações da compilação. Ao determinar tratar-se das “maiores canções de todos os tempos”, o periódico torna-se obrigado a respeitar os requisitos de qualidade e significância para não fazer o leitor de idiota.

O Brasil pode dar-se por satisfeito: conseguiu emplacar uma preciosa indicação no clubinho dos 500: “Ponta de Lança Africano”, improvável canção de Jorge Ben Jor ganhou a 351ª posição. Nada a comemorar já que ficaram de fora temas mais cotados como “Garota de Ipanema”, “Desafinado”, “Carinhoso”, “Travessia”, “Asa Branca”, “Aquarela do Brasil” e “Chove Chuva” (essa última do próprio Ben Jor).

Outros países não tiveram melhor sorte. Foram banidos da lista xenófoba da RS a França (Edith Piaf, Charles Aznavour, Serge Gainsbourg), a Itália (Pavarotti, Bocelli, Peppino di Capri), a Espanha (Paco de Lucia, Sarita Montiel, Gypsy Kings), Portugal (Amália Rodrigues, Dulce Pontes, Madredeus) e a Alemanha (Ute Lemper, Marlene Dietrich, Nina Hagen). Por não se expressarem em inglês, foram escanteados.

Que dirá os pobres latino-americanos. Tal como imigrantes ilegais, foram barrados a Argentina (Astor Piazzola, Carlos Gardel, Mercedes Sosa), o México (Lucho Gatica, Trio Los Panchos, Maná) e Cuba (Pablo Milanés, Silvio Rodriguez, Buena Vista Social Club).

O rol de escandalosas omissões é infindável a ponto de desacreditar totalmente o trabalho realizado. Grandes nomes que fazem parte da memória musical da civilização ocidental foram atirados na lata de lixo da história. Foi ignorada toda a produção musical relevante dos últimos 100 anos na América e na Europa para ceder lugar à ‘genialidade’ teen dos Backstreet Boys e da Britney Spears.

Poderíamos relevar tais aberrações fosse esse painel um dos inúmeros que pipocam em sites inexpressivos na internet, sem qualquer fundamento. Não é o caso. A Rolling Stone se alardeia como uma revista gabaritada e adquiriu respeitabilidade nos meios musicais. Figurar em sua ‘qualificada’ seleção tem para o músico o peso equivalente ao que teria para o cinema uma indicação ao Oscar.

A revista, outrora compromissada com Música (com M maiúsculo), a cada ano aprofunda sua submissão às demandas de mercado, privilegiando artistas e gêneros que abastecem de milhões de dólares a indústria cultural em detrimento da sua qualidade artística. Concebida na cena efervescente de São Francisco nos insurgentes anos 60, como porta-voz da contracultura e da vanguarda intelectual, a RS vendeu-se desavergonhadamente ao sistemão.

Sendo uma publicação sediada nos EUA (embora com tentáculos em muitos países), não esconde sua subserviência descarada ao showbiz americano. Abdicou dos ideais democráticos e universalistas que inspiraram sua criação para adotar um deslavado colonialismo cultural, difundindo para o resto do planeta a predominância de valores essencialmente americanos.

Vício de origem: ao contrário do que se imagina, o nome da publicação não foi um tributo ao grupo The Rolling Stones (inglês) e sim à canção “Like a Rolling Stone” de Bob Dylan (americano).

A pretensiosa e frustrada empreitada de elencar as canções mais importantes da história, dando desproporcional destaque ao que gera grana e é produzido em seu quintal consagra a nova fase comercial da revista.

Nosso conforto é saber que a relação de melhores de todos os tempos da RS é trocada de tempos em tempos, ao sabor dos tempos.

O paradoxal é que essa patética lista pretendeu, segundo os editores, substituir a anterior de 2004 justamente para ampliar a diversidade e “corrigir injustiças” contra negros e mulheres. Só se for para as “negas deles” (literalmente).

Prefira a despojada mas honesta lista das ‘500 Mais da Kiss FM’.

 

 

 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

SENHOR DAS ARMAS

“Tatatatatatatatatata tatatatatatatatatata” 

(Gianni Morandi, “C´Era un Ragazzo che Come me Amava i Beatles e i Rolling Stones”)

Para enfrentar os bandidos e os esquerdistas (todos no mesmo balaio), nosso presidente propõe armar os “homens de bem”. Entenda-se por “homens de bem” os distintos indivíduos que difundem fake news e mensagens de ódio nas redes sociais e insuflam as pessoas a destruir os valores democráticos. Gente de fina estirpe!

Imagino que a orientação presidencial seja extensiva às “mulheres de bem”. As “mal amadas”, convertidas em “bem armadas”, acomodariam nas bolsas, ao lado do nécessaire com o kit maquiagem, o mais efetivo acessório para subjugar um homem: o três oitão? Seria uma forma de resolver os problemas conjugais e de assédio sexual pelo critério do “quem pode mais, chora menos”, sem precisar recorrer à congestionada Lei Maria da Penha.

De onde vem essa fixação do presidente por armas? Ele só pensa nisso! Não consigo entender tamanha fissura por armas letais que cospem fogo partindo de quem treme de medo diante de uma prosaica pistola de vacinação.

Talvez Freud explique. Por trás dessa obsessão provavelmente haja um problema mal resolvido com a virilidade. Uma necessidade patológica de afirmar a masculinidade que ele mesmo, nos momentos solitários de introspecção, sente fraquejar. Quem sabe o “miliciano machão”, nos íntimos e inconfessáveis recônditos de seu coração, sinta maior prazer em, ao invés de oferecer carinho a sua amada, afagar uma carabina. Sobretudo as de “cano longo”. Michelle talvez possa confirmar essa suspeita numa CPI sobre armas.

O revólver é um símbolo fálico por excelência. Tal qual o pênis é uma representação contundente de potência. Ejacula balas poderosas que abatem inapelavelmente o submisso oponente. Essa imagem deve provocar momentos de puro orgasmo nos pitboys bolsonaristas, ávidos de sangue.

Na mesma linha, insere-se a aversão a gays (homofobia) assim como o ódio a mulheres (misoginia), sentimento a que é na mesma moeda correspondido. Pelas pesquisas de opinião, a depender do eleitorado feminino, a trupe palaciana já teria sido defenestrada do poder.

A verdade é que, por trás da imagem máscula, o capitão se borra de medo de mulheres, especialmente as que o afrontam. Recordemos que num dos debates eleitorais de 2018 pela TV, Bolsonaro levou um homérico sabão da então candidata Marina Silva que o deixou sem rumo. Ser repreendido por uma mulher negra, franzina e de aparência humilde deve ter deixado traumas irreparáveis em sua personalidade e ter colocado sua autoestima no chão.

Por coincidência (ou não?), logo em seguida a esse episódio, adveio a facada que o tirou definitivamente dos incômodos debates e colocou-o no centro da mídia e, em seguida, no poder. Não fosse a providencial ação da arma redentora (a faca, no caso), teria ficado à mercê de ser trucidado nos debates por seus adversários e sobretudo adversárias. Deve-se sentir eternamente grato a elas (às armas, não às mulheres).

Essa é uma das razões, por certo, que Bolsonaro preza andar armado. Sem condições intelectuais e emocionais de vencer um adversário no campo das ideias como um ser civilizado, pode derrotá-lo com um balaço no meio da testa.

Seu palavreado chulo e sua postura grotesca impedem-no de reagir respeitosamente a uma contestação. Por isso, jamais se expõe a ser questionado por jornalistas sérios ou por desafetos políticos. Só fala no cercadinho para sua restrita plateia de fanáticos que o trata como “mito” inatacável. Seu linguajar é o de um oficial tosco de baixa patente, acostumado a dar (e receber) ordens. Nesse universo, as demandas são resolvidas “manu militari”.

Inspirou-se para tanto no nobre pensamento de Olavo de Carvalho, aquele que, entre uma regurgitação filosófica e outra, adora abater, com sua espingarda, ursos e outros animais em extinção para fazer churrasco.

Obviamente aqueles que batalham para construir um futuro de paz e solidariedade universal rejeitam essa concepção estapafúrdia de resolver demandas sociais a base de metrancas.

Os seres humanos moralmente elevados já ultrapassaram esse estágio primitivo bestial herdado do neandertal que enfrentava os predadores munido de tacape. Evoluímos para uma sociedade avançada que, através do diálogo e do entendimento, promove a conciliação a fim de resolver litígios com base em argumentos e normas.

Curioso é que tais ideias bélicas bizarras recebem o aval de pastores evangélicos. É algo que me foge à compreensão. Talvez eu tenha pulado o pedaço da Bíblia em que Cristo insufla seus seguidores a trucidar os fariseus. Na minha confusa memória, resta a recomendação do profeta para que se ofereça a outra face. Esse trecho aparentemente foi abolido das escrituras pelos “malafaias” da vida.  “Armai-vos uns aos outros” é a nova palavra de Deus.

Os seguidores da seita bolsonarista apoiam incondicionalmente os desvarios emitidos pelo destrambelhado mandatário. Como fizeram com outros temas como o “terraplanismo”, a “cloroquina” e o “voto impresso”, abraçam os devaneios belicistas do mandatário de plantão, sem se indagar “como” e “por que”. Torçamos para que sua próxima recomendação não seja instruir as crianças a alvejar o vizinho petista.

Inútil argumentar para tais indivíduos incultos que essa situação representa o fim da civilização que vínhamos construindo e a falência das nossas instituições da Justiça e do poder de polícia do Estado. Seria um retorno ao ‘far west’ onde as questões eram decididas com tiroteios e duelos.

Com todos andando armados por aí, as discussões de trânsito e as brigas de bar seriam resolvidas “a bala” sem precisar ocupar os policiais que dedicariam seu tempo a atividades mais proveitosas como reprimir manifestantes e proteger o patrimônio dos ricaços.

Deveríamos também excluir do curriculum escolar básico matérias inúteis como filosofia, sociologia, ciências e artes e incluir o tiro ao alvo.

Obviamente toda essa discussão interessa exclusivamente aos bilionários e aos grandes proprietários (os tais “homens de bem”) que para defender suas terras teriam carta branca para erigir arsenais bélicos particulares e municiar seus jagunços para eliminar índios, ativistas ambientais e sem-terra.

Quanto ao povão, preocupado que está com questões mais mundanas como dar de comer a família, essa discussão passa longe.

Quem sabe, também possam estes ter acesso a armas. Assim, oxalá, os miseráveis empoderados façam uma insurreição armada e coloquem no poder um líder revolucionário radical. E façam com que os poderosos de hoje sejam perfilados num paredão e aniquilados pelas mesmas armas que ajudaram a difundir.

E o mote seja refeito: “Povo armado jamais será derrotado”.