A conceituada revista Rolling Stone publicou recentemente sua lista de 500 melhores canções de todos os tempos (grifo nosso).
Aparecem na lista Cardi B, Carly Rae Jepsen, UGK, Weeknd, Lizzo, Migos, DMX, Megan Thee Stallion, Craig Mack, Childish Gambino, BTS, Clipse, Queen Pen, Big Star, Pusha T, Lil Nas X, Bad Bunny, Mark Ronson, CL Smooth, Funky 4+1 e Juvenille. Já ouviu falar em algum deles?
Esses ilustres desconhecidos são, em sua maioria, artistas que bombaram nas plataformas de streaming, e sua escolha deveu-se não a critérios qualitativos, mas em função dos milhões de downloads em celulares e ipads. Em breve, estarão mofando nas nuvens do esquecimento assim que forem largados à sua irrelevância.
Em compensação, músicos de diversos gêneros e renomado prestígio não fizeram jus a uma indicaçãozinha sequer. Ficaram de fora dentre outros, Frank Sinatra, Tony Bennett, Al Jarreau, Sarah Vaughn, Nat King Cole, Quincy Jones, Diana Krall, Barbra Streisand, Carpenters, Janis Joplin, Joan Baez, Sting, Tom Waits, Bjork, Annie Lennox, Cranberries, Lenny Kravitz, Jamiroquai, Massive Attack, Moby, Manu Chao e Arctic Monkeys.
Não é preciso ser especialista em música para constatar há algo de errado. Que parâmetros teriam sido usados para reputar ídolos do pop descartável como Rihanna e Ariana Grande como superiores a um Tom Jobim ou um Burt Bacharach?
E o que dizer de canções que atravessaram gerações e se eternizaram no imaginário popular como “Moonlight Serenade”, “As Time Goes By”, “Over the Rainbow”, “Smoke Gets in Your Eyes”, “Moon River”, “Take Five”, “Summertime”, “Stella by Starlight”, “My Funny Valentine”, “Misty”, “Autumn Leaves”, “Ne me Quitte Pas”, “La Vie en Rose”, “Volare”, “Besame Mucho”, “Guantanamera”? Nenhuma foi lembrada. Por serem músicas ‘de tiozão’, não mereceram a atenção dos iluminados idealizadores do famigerado guia da RS.
Em seu lugar, entraram coisas tipo “Fuck the Police”, “Gasolina”, “Toxic”, “In Da Club”, “Da Doo Ron Ron”, “Yeah”, “Hey Ya”, “Bam Bam” e “Big Poppa” .
O rock não teve melhor sorte. Foram sumariamente vetadas bandas de primeira linha como Deep Purple, Iron Maiden, Dire Straits, Genesis, Yes, Jethro Tull, Emerson Lake & Palmer, Supertramp, Echo & Bunnymen, Siouxsie & Banshees e os ex-Beatles Paul McCartney e George Harrison. Foram preteridos por uma simples razão: são todos ingleses. Fossem da terra de tio Sam, não fariam jus a tamanha desfeita provinda de uma publicação que nasceu e cresceu vinculada a esse gênero musical e agora cospe no prato em que comeu.
Por outro lado, abundaram indicações de gangsta rap, hip hop e country music (equivalente ao nosso sertanejo), estilo cujo alcance está restrito ao território americano.
Nada contra. Não se trata de discriminar determinados gêneros musicais. A questão é que um levantamento que se propõe a ser um painel da produção musical representativa da história deveria com isenção abrir espaço ao que é produzido em todas as épocas e lugares, segundo sua relevância artística.
Ou então que se definam com clareza as limitações da compilação. Ao determinar tratar-se das “maiores canções de todos os tempos”, o periódico torna-se obrigado a respeitar os requisitos de qualidade e significância para não fazer o leitor de idiota.
O Brasil pode dar-se por satisfeito: conseguiu emplacar uma preciosa indicação no clubinho dos 500: “Ponta de Lança Africano”, improvável canção de Jorge Ben Jor ganhou a 351ª posição. Nada a comemorar já que ficaram de fora temas mais cotados como “Garota de Ipanema”, “Desafinado”, “Carinhoso”, “Travessia”, “Asa Branca”, “Aquarela do Brasil” e “Chove Chuva” (essa última do próprio Ben Jor).
Outros países não tiveram melhor sorte. Foram banidos da lista xenófoba da RS a França (Edith Piaf, Charles Aznavour, Serge Gainsbourg), a Itália (Pavarotti, Bocelli, Peppino di Capri), a Espanha (Paco de Lucia, Sarita Montiel, Gypsy Kings), Portugal (Amália Rodrigues, Dulce Pontes, Madredeus) e a Alemanha (Ute Lemper, Marlene Dietrich, Nina Hagen). Por não se expressarem em inglês, foram escanteados.
Que dirá os pobres latino-americanos. Tal como imigrantes ilegais, foram barrados a Argentina (Astor Piazzola, Carlos Gardel, Mercedes Sosa), o México (Lucho Gatica, Trio Los Panchos, Maná) e Cuba (Pablo Milanés, Silvio Rodriguez, Buena Vista Social Club).
O rol de escandalosas omissões é infindável a ponto de desacreditar totalmente o trabalho realizado. Grandes nomes que fazem parte da memória musical da civilização ocidental foram atirados na lata de lixo da história. Foi ignorada toda a produção musical relevante dos últimos 100 anos na América e na Europa para ceder lugar à ‘genialidade’ teen dos Backstreet Boys e da Britney Spears.
Poderíamos relevar tais aberrações fosse esse painel um dos inúmeros que pipocam em sites inexpressivos na internet, sem qualquer fundamento. Não é o caso. A Rolling Stone se alardeia como uma revista gabaritada e adquiriu respeitabilidade nos meios musicais. Figurar em sua ‘qualificada’ seleção tem para o músico o peso equivalente ao que teria para o cinema uma indicação ao Oscar.
A revista, outrora compromissada com Música (com M maiúsculo), a cada ano aprofunda sua submissão às demandas de mercado, privilegiando artistas e gêneros que abastecem de milhões de dólares a indústria cultural em detrimento da sua qualidade artística. Concebida na cena efervescente de São Francisco nos insurgentes anos 60, como porta-voz da contracultura e da vanguarda intelectual, a RS vendeu-se desavergonhadamente ao sistemão.
Sendo uma publicação sediada nos EUA (embora com tentáculos em muitos países), não esconde sua subserviência descarada ao showbiz americano. Abdicou dos ideais democráticos e universalistas que inspiraram sua criação para adotar um deslavado colonialismo cultural, difundindo para o resto do planeta a predominância de valores essencialmente americanos.
Vício de origem: ao contrário do que se imagina, o nome da publicação não foi um tributo ao grupo The Rolling Stones (inglês) e sim à canção “Like a Rolling Stone” de Bob Dylan (americano).
A pretensiosa e frustrada empreitada de elencar as canções mais importantes da história, dando desproporcional destaque ao que gera grana e é produzido em seu quintal consagra a nova fase comercial da revista.
Nosso conforto é saber que a relação de melhores de todos os tempos da RS é trocada de tempos em tempos, ao sabor dos tempos.
O paradoxal é que essa patética lista pretendeu, segundo os editores, substituir a anterior de 2004 justamente para ampliar a diversidade e “corrigir injustiças” contra negros e mulheres. Só se for para as “negas deles” (literalmente).
Prefira a despojada mas honesta lista das ‘500 Mais da Kiss FM’.
Um comentário:
Prezado Sérgio ,
mais um excelente texto , English is the first one e a qualidade nada importa , apenas e tão somente o consumo . Money .
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