quarta-feira, 27 de julho de 2022

ORA PRO NÓBIS


 Reza a lenda que, pouco antes de completar dois milênios de sua partida para o paraíso celestial, Jesus retornou à Terra para conferir in loco os frutos de sua evangelização.

Embora suas pregações tivessem tido lugar na Galileia, constatou que nessa região predominavam agora aqueles que professavam credos diferentes.

Mas, deu-se por satisfeito em saber que, além do Mediterrâneo, sua doutrina expandira-se e havia, do outro lado do mundo, grande número de pessoas que seguiam (ou diziam seguir) seus ensinamentos. A palavra de Deus atravessara os mares e catequizara diferentes civilizações.

Escolheu o Mestre visitar um grande povoado cristão cujo nome homenageara um de seus mais fervorosos discípulos: São Paulo. Nessa localidade ocorreria uma gigantesca procissão ou uma romaria, apelidada de ‘Marcha para Jesus’, para afirmar a fé na palavra divina de que fora portador. Para melhor conhecer o que se passava no coração dos fiéis, o Salvador misturou-se anonimamente às massas.

Sua aparência franciscana, para sua surpresa, parecia ofender os beatos que ‘marchavam’ a seu lado. Olhavam com desdém para sua túnica despojada, suas sandálias de tiras e especialmente seus longos cabelos e sua barba desalinhada, que pareciam agredir a assepsia espartana da multidão.

Seu aspecto humilde e desleixado destoava dos demais indivíduos que portavam penteados recos e trajes alinhados onde predominava o verde-amarelo. Alguns bradavam por um outro Messias (anticristo?) aclamado como “mito”.

Indiferente aos olhares hostis, caminhava Jesus sentindo-se uma ovelha desgarrada daquele rebanho, quando em meio às faixas e bandeiras nacionais, sobressaiu-se um enorme objeto metálico que parecia ser uma cruz meio manca alongada por um cano.

Indagou Cristo qual o significado daquele estranho artefato exposto com destaque na ‘parada’, quando lhe foi informado tratar-se de uma ‘pistola’ gigante. “E para que serve?” “Ora, serve para matar”, responderam-lhe. “Matar? Matar quem?” “Os inimigos, bandidos, comunistas, índios, sem-terra”. O Bom Pastor, cada vez mais confuso, insistiu: “Mas por que matar esses filhos de Deus ao invés de convertê-los pacificamente?”

Veio-lhe à mente com clareza os sermões com tanta precisão transcritos nos evangelhos: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei aos que vos maldizem, orai pelos que vos insultam. Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra”. (Lucas 6:27-31). Em suas pregações de amor, jamais caberia ao bom samaritano eliminar de outrem o dom da vida, que apenas a Deus pertence.

O comportamento questionador e as embaraçosas indagações daquele lunático começaram a incomodar a plateia. Passaram a ameaçar o santo homem, tachando-o de predicados depreciativos cuja acepção desconhecia: “cai fora, riponga esquerdopata”, “vai pra Cuba, seu vermelhinho”, “vaza, barbudo maconheiro”.

Não reconhecido e odiado e justamente por aqueles que deveriam reverenciá-lo, o Redentor retornou entristecido para o Reino de Deus, onde amargou o insucesso de sua missão regeneradora. Em suas orações, foi, todavia, condescendente: “Pai, perdoai-os. Passaram-se dois mil anos e eles continuam a não saber o que fazem”.

 

 

3 comentários:

Paulo Roberto de Almeida disse...

Excelente texto, merece divulgação mais ampla.

Anônimo disse...

Parabéns, Sérgio. Muito feliz sua inspiração. Gostei. Escrita correta. Tema interessante. Personagens facilmente reconhecidas. Leve avante. Torço por você. Sua garra vai transcender.
Um abraço. Dra. Maria José Milani.

Britto disse...

Sensacional! Como o ser humano vai ficando mais insensível e irracional, com o passar do tempo...