Você me abre seus braços e a gente
faz um país (“Fullgás”, Marina Lima & Antônio Cícero)
Estamos, desde o início de 2023, sob nova direção. Não, não vou aqui tratar de política, tema proibitivo que já rendeu tudo de ruim que podia nos últimos quatro anos, criando inimizades, apartando familiares, instituindo a segregação, o ódio e o culto às armas de fogo como programa de Estado.
Do alto de meio século de vida adulta
que carrego às costas, assisti esse país sofrer inomináveis insanidades nas
mãos de governantes dos mais diversos matizes. Jovem, senti as agruras de ter experimentado
na pele o medo de me manifestar, quando, durante o regime militar, no ambiente escolar
e nas reuniões com amigos, foi-me usurpado o direito de externar meu
pensamento e debater questões de interesse geral, sob o risco de ir para a
prisão ou ser tachado de subversivo.
Atravessei a fase de ascendência, em
substituição aos fardados, dos políticos profissionais que assaltaram
(literalmente) o poder e instituíram práticas de corrupção e ineficiência
administrativa.
Testemunhei a miséria aumentar, a
inflação disparar, a poupança ser impunemente confiscada, entre outros abusos
de governantes ineptos e suas políticas econômicas desastrosas aplicadas pelos
postos Ipiranga de plantão.
Assisti com desgosto o país ‘do
futuro’, que ofereceu ao mundo o glamour do carnaval, a magia da bossa nova e a
ginga de Pelé e Garrincha, entrar em decadência e perder o protagonismo no
cenário mundial. Chegando a colocar-se em quinto lugar entre as maiores economias
do planeta, hoje não figura sequer entre os dez primeiros. Enquanto o resto do
mundo decolava, o Brasil caminhava para trás. Até o futebol, maior orgulho nacional,
desabou na mediocridade, a partir do fatídico 7 x 1.
No entanto, ainda que tenha passado
por tantos dissabores cívicos, jamais presenciei momentos de tamanha humilhação
como os dos tempos recentes.
Tudo o que conferia ao nosso povo uma
ponta de orgulho sofreu um cruel processo de desmanche nos últimos quatro anos.
Nossos caros valores históricos, artísticos e culturais, nossa natureza
exuberante, os povos originários, milenares guardiães das nossas florestas e
rios, aquilo que enfim nos conferia nossa identidade, que nos distinguia como pátria,
foram desmantelados. O país de povo acolhedor e alegre e de tantas belezas
naturais, passou a ser mal visto, tornou-se um pária internacional governado por
lunáticos.
Senti desalento pelo retrocesso
civilizatório que nos vitimou nesse período vergonhoso em que foi aqui instituída uma
república miliciano-evangélico-obscurantista.
Em lugar das glórias esportistas,
passamos a ostentar o título de campeões mundiais de desigualdade social, de desmatamento
e de número de óbitos por COVID (por número de habitantes).
A culpa pela situação vexatória não
deve ser imputada ao grupelho arcaico e negacionista que assumiu o poder, mas àqueles
que lá o alçaram pelo voto. Ou seja, ao povo brasileiro. Não me reconheci como parte
dessa gente. Embora sempre tenha tido uma postura crítica a meus conterrâneos,
à sua vocação de levar vantagem às custas dos demais, ao matreiro ‘jeitinho
brasileiro’ e à aceitação do ‘rouba-mas-faz’, encarava a coisa com uma dose de condescendência
permissiva, afinal o brasileiro é antes de tudo um gozador nato, aquele que
leva tudo ‘na flauta’.
A mesma índole jocosa que no passado levou
tais pessoas, como protesto, a eleger o rinoceronte Cacareco e consagrou
figuras tragicômicas como Tiririca e Doutor Enéas, agora alçava ao poder um outsider,
um indivíduo grotesco e inculto, um hitlerzinho bufão que passou a dirigir o país como se fosse um
botequim de zona, ameaçando aos berros seus desafetos com palavras de baixo
calão e nos constrangia com sua postura pouco dignificante em reuniões
ministeriais e junto a chefes de Estado.
Só que a ascensão dessa mais nova e
perversa versão da bizarrice nacional não provocou risos. Não vi humor algum em
assistir impotente à barbárie por ela promovida nos últimos anos pela graça (e
desgraça) do projeto de destruição perpetrado com suporte das nossas elites infames.
Sim, pois a base principal de apoio ao
desgoverno que se instalou partiu das camadas mais bem aquinhoadas da população.
Triste constatar que esses ditos ‘cidadãos de bem’ preferiram financiar grupos
de brucutus armados para que lhes fosse assegurado conservar sua posição social
privilegiada do que se empenhar em construir uma nação digna com instituições sólidas
e estáveis onde todos tenham direitos assegurados.
Felizmente todo esse pesadelo chegou
ao fim. E a mudança foi paradoxalmente alavancada pelos mais humildes, os menos
escolados, os excluídos, os habitantes das periferias das grandes cidades e dos
rincões distantes do sertão nordestino. Os mesmos que não se curvaram à
chantagem das medidas eleitoreiras custeadas com indecorosos malabarismos
fiscais. Os mesmos que, contrariando as orientações dos pastores charlatães e
dos reluzentes ídolos sertanejos, tiveram a hombridade de votar contra e pôr um
basta nessa farra.
Isso não significa que devemos passar
o pano nos novos dirigentes. Têm eles que ser cobrados para não sair da linha. Apesar
de todo o desalento, é preciso conservar a esperança de superarmos as
desventuras. Afinal a tarefa que nos cabe é nada menos do que reconstruir um
país em ruínas.
5 comentários:
Caro Sérgio,
Perfeito!
Que alívio ler seu texto.
Saímos de um pesadelo, mas não imunes, e sim muito magoados, tristes e com marcas profundas em nós que buscamos sempre justiça social, ética, amor ao próximo na hora de escolher os candidatos para votar.
As máscaras caíram mas foi e têm sido muito sofrido.
Voltamos a respirar
Concordo plenamente contigo
Vamos agora abaixar as guardas , o revanchismo, o ódio
, ganância de poderosos , insetates daqueles , que não aceitam a derrota
aceitam
Feliz Ano Todo,que a constelação que escolhemos,nos ilumine e nos guie pela luz.Sempre bom ler seus brilhantes textos
Bela reflexão, Sergio!
Triste e verdadeira! Esperança e ação para o melhor de cada um!
Conte comigo!
A tristeza se abateu sobre nós vendo o país se "desmanchar" sob as armas, o desmatamento, as queimadas, os agrotóxicos e a destruição da educação, da cultura e das artes; ao respirar novos ares, sonhando com mudanças, vimos um desastre de terror e ódio avançar sobre nossas instituições de maneira nunca vista, devido à incompetência, prevaricação e más intenções de muitos. Mas a democracia deu a volta por cima e imediatamente se recupera, se unindo para punir os vândalos, bandidos destruidores e ladrões que hão de pagar pelos seus crimes. Vamos respirar novamente, avançar em nossos objetivos de reconstrução, sempre alertas contra essa maligna parcela de fanáticos que não sairão desse surto até "morrerem de raiva".
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