Com um sobressalto, fui arrancado da cama por um sonho apocalíptico.
Ainda grogue e alarmado, abri as cortinas e meu humor logo mudou. Lá fora, me
acenava um maravilhoso céu azul. Era sábado de aleluia. Aleluia! Que lindo sol!
Um dia claro com temperatura amena, típico do início de outono. Perfeito para
uma caminhadinha ao ar livre.
Os gerânios do jardim do vizinho pareciam mais vivazes do que nunca. Um
par de borboletas azuis bailava graciosamente a seu redor. Era a vida que
pulsava mais forte ou meu bom humor que fazia tudo parecer belo? Até o ar parecia
mais leve hoje, com menor presença de gases tóxicos produzidos por automóveis.
Nem mesmo consigo perceber o azucrinante ruído rotineiro do ronco de motores,
buzinas e motos turbinadas.
Falando nisso, cadê os carros? Só vislumbro alguns estacionados a meio
fio, como se tivessem sido abandonados há séculos por seus donos como peças de
um museu a céu aberto. Suas pálidas cores metálicas contrastam com o verde vívido
emanado pelas imponentes seringueiras que protegem o passeio com sua centenária
serenidade vegetal.
Andei até o final da quadra. Nenhuma alma viva. Um silêncio austero, quebrado
apenas pelo alegre gorjeio dos passarinhos que pareciam mais felizes hoje,
cantarolando com maior vigor do que o habitual. Aquela quietude (na verdade,
apenas a ausência dos irritantes ruídos urbanos) deveria ser celebrada mas, nas
circunstâncias, tornou-se perturbadora.
10h15min. A esse horário, o vai-e-vem costuma ser intenso. Ok, sábado o
movimento é menor. Uns 20% menos gente. Mas... ninguém na rua! Muito esquisito!
O mais estranho é o comércio fechado. A loja de armarinhos da esquina. Fechada.
O pet shop que aos sábados fervilha de cães latindo e donos tagarelando. Fechada
também. Será que emendaram o feriado de sexta-feira da Paixão com o domingo de
Páscoa? E a vendinha do ‘seu’ Josué? Abre
até mesmo aos domingos e feriados no período da manhã. Fechada também. Não! Definitivamente,
há alguma coisa muito errada por aqui.
Veio-me à memória um daqueles episódios sinistros da antiga série Além da Imaginação (“Onde estão Todos?”
era o título), em que o personagem principal se vê vagando pelas ruas de uma
cidade com casas e estabelecimentos comerciais perfeitamente conservados mas
não encontra nenhum habitante. E baixa o desespero. O mesmo que começo a
experimentar agora.
Teríamos sido vitimados durante a noite por uma maciça invasão de naves
extraterrestres que, em pouco tempo, dizimaram a população com seus artefatos
de destruição em massa? Isso explicaria o pesadelo tenebroso dessa noite...
Enquanto meu cérebro maquinava elucubrações cada vez mais catastróficas, vislumbrei,
ao longe, adiante, alguém caminhando. Ufa! Não estou só no mundo. O vulto do
que parecia ser um solitário homem se desloca, com uma aparência suspeita, em
minha direção com passadas rápidas e estridentes que reverberavam tetricamente
na calada daquela inusitada manhã.
Seria mesmo uma pessoa? Ou talvez um alienígena, perscrutando os meandros
do planeta desabitado, em busca de terráqueos sobreviventes (eu, por exemplo) para
concluir a ação de extermínio? Já o imaginei, sacando de seu arsenal
intergaláctico, uma arma letal e me abatendo impiedosamente.
Ele continua se aproximando ameaçador. Pensei em furtivamente atravessar
a rua para evitar que nossos caminhos se cruzassem, o que parecia, em função
das trajetórias em curso, inexorável. Mas abandonei essa estratégia ingênua de
fuga pois o expediente não seria capaz de afastar o perigo eminente nem me
manteria fora do alcance de seus braços de plasma dilatável. Sua visão de raio
X e sua arma mortífera me convertiam em presa fácil.
Ao chegar mais próximo, uma constatação terrível aumentou ainda mais meu
pânico. Ele vestia no rosto uma sinistra MÁSCARA negra que cobria a maior parte
de seu semblante!! E luvas plásticas envolviam suas mãos (ou seriam ganchos?).
Não restava dúvida. Estava eu à mercê da criatura, e nada poderia mudar meu
destino. Prossegui titubeante como um boi rumo ao matadouro, resignado ante o
desígnio cruel que me aguardava.
Ao chegar a poucos metros, verifiquei com um misto de alívio e decepção,
que se tratava tão-somente de um reles rapaz de carne e osso de seus 30 anos, o
qual ignorava minha presença, entretido que estava com seu celular (sua única ‘arma’,
ao que parecia) e ia passando indiferente, sem sequer encarar minha expressão
de pavor que, aos poucos, se dissipava.
Mais calmo mas ainda sob tensão, procurei aquietar meu coração acelerado.
Quando a curiosidade superou o medo, resolvi, num ato de bravura, a ele indagar:
- Me desculpe. Poderia me dizer por que as ruas estão vazias e está tudo
fechado?
- Ué, o senhor não está sabendo da pandemia de coronavírus?
- Hã. Corona... o quê?
Minha vida estava salva. Acho. Pelo menos momentaneamente.
Uma pandemia? O que isso significa? Devia ser algo grave pra tirar todo
mundo assim de circulação naquele sábado reluzente de outono.
Seja lá o que for, melhor voltar pra casa que, pelo visto, é o lugar mais
seguro.
Mas quem vai salvar as seringueiras, os passarinhos, os gerânios, as
borboletas?
3 comentários:
Belo texto, Sayeg.
Tenho acompanhado suas postagens e gostei muito dessa última. Pelo menos não é política. Tenho o seu livro ,mas ainda não tive tempo de ler. Tenho uma pilha à minha espera
Belo texto sim , como sempre.
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