sexta-feira, 30 de abril de 2021

INDEPENDÊNCIA OU MARTE

 
        O programa espacial que almeja “conquistar” outros planetas é por muitos considerado um grande progresso para a humanidade. Eu enxergo diferente. Em minha modesta opinião de terráqueo, as viagens espaciais denotam, isto sim, um fracasso da relação do ser humano com a fonte primordial de sua existência, o planeta Terra.

É como se esse afável astro, que por tantos milênios ofereceu acolhimento para o ser humano fosse agora por ele preterido. Comporta-se este como um filho ingrato que despreza aquilo que a mãe-Terra tão abnegadamente lhe concede, insuficiente para satisfazer sua desmedida ambição.

É como um marido infiel que, embora tenha o mundo (literalmente) para si, entediou-se com os atributos femininos que a formosa Terra tem-lhe a proporcionar. E trai sua devotada companheira, “pula a cerca”, buscando “aventuras” no espaço sideral.

Vã procura pois os outros planetas do sistema solar ou os que orbitam estrelas “próximas” são inóspitos e hostis à vida. Não há neles, ao que se saiba, nada que seja compatível com as necessidades do ser humano. É preciso neles criar condições absolutamente artificiais de adaptabilidade, “tirando leite de pedra”. Ou seja, definitivamente, não foram feito um para o outro.

Pode-se sonhar que, em algum canto do universo, a um punhado de anos-luz de distância, haja um lugar idílico, em que se possa reviver o éden de Adão e Eva sem a presença de serpentes. Devaneio esse que impede que o ser humano enxergue que o paraíso de fato já existe. E está bem ao seu lado! Ao nos afastar em direção ao infinito espaço, o retrovisor revela que o verdadeiro shangri-lá foi deixado para trás, no magnífico astro azul que visto à distância destaca-se por sua deslumbrante beleza.

Líderes espirituais como Jesus e Buda já alertaram (sem serem compreendidos) que o reino de Deus e o Nirvana estão aqui mesmo, a nosso alcance. Mas nem testemunhos tão qualificados são suficientes para convencer o teimoso homem a desistir da inglória empreitada planetária que, mais do que desafio, virou uma obsessão.

Quando digo “homem”, por extensão, entenda-se que na verdade refiro-me especificamente ao indivíduo inserido neste determinado sistema político e social que infelizmente está se tornando globalizado. Pois, ao que saiba, essas características não vigoram em culturas ditas “primitivas” e povos ancestrais. Em tais comunidades não parece haver qualquer anseio dos indivíduos em abdicar do habitat em que milenarmente se inserem.

Os povos indígenas isolados, por exemplo, vivem em completa integração com o ambiente que os cerca ao qual adaptaram suas práticas e costumes com perfeição. Não lhes passa pela despoluída cabeça essa ideia estapafúrdia de sair vagando por aí em busca de outras paragens, exceto se forçados por uma circunstância excepcional. Tampouco cogitam construir custosas naves desperdiçando recursos, tempo e energia que poderiam mais proveitosamente ser utilizados em benfeitorias para a própria comunidade que habitam.

Por que adotam eles essa incompreensível atitude de se conformar com o “pouco” que têm? Talvez porque neles haja a percepção de que não faz sentido buscar em outros recônditos o que não lhes falta: o maravilhoso êxtase da existência presente no “aqui agora”, oferecido como bênção celestial por seus deuses.

Parece que a obstinação sideral, a insatisfação cósmica de querer sempre mais e mais é característica exclusiva da “evoluída” civilização ocidental, fruto dos valores enaltecidos pela arrogante ética judaico-cristã que produziu esse sistema econômico depredador.

Alguns podem objetar que foi esse louvável inconformismo que impulsionou o homem a criar invenções e desenvolver uma ciência utilitarista que proporcionou felicidade ao ser humano.

“Mas a que felicidade te referes, cara pálida?” Todo o progresso científico não parece ter sido capaz de levar seu mentor a atingir o estado divino da alma.

Pergunte-se às pessoas de nossa sociedade se atingiram a tal de “felicidade”. Não preciso de pesquisas de opinião para afirmar que a imensa maioria responderá sem pestanejar: “não!”. Aumento de depressão, estresse, desesperança, altas taxas de suicídios, consumo crescente de medicamentos, drogas e álcool que nos afastam da penosa realidade são demonstrações inequívocas de que a felicidade vem se tornando uma meta cada vez mais inatingível. Buscam freneticamente prazeres exteriores mas são incapazes de um simples gesto de olhar para dentro, confrontar sua angústia e indagar-se honestamente: “O que realmente importa nessa vida?”

Não nego que a ciência tenha disponibilizado conforto, abundância e maior número de anos de vida, que nos dão a falsa impressão de que somos mais felizes. Ouso dizer que ocorre exatamente o oposto. Esses “benefícios” trazidos por nossa civilização são iniciativas para escamotear a decepção de quem não consegue achar motivos reais pelos quais vale a pena viver.  Por isso, a felicidade é procurada em prazeres fúteis que, ao serem propiciados, revertem-se em novos desejos indefinidamente.

Parecem eles, no entanto, nos afastar cada vez mais da plenitude que na verdade está nas coisas singelas do dia a dia. O sorriso de uma criança, o afago a um cão, as relações de amizade, os encontros familiares, o contato com a água do mar, o banho de cachoeira, a liberdade de poder correr livre num campo imenso, o esplendor de uma paisagem exuberante, o espreguiçar pela manhã ensolarada, o trocar palavras de amor ao luar. Coisas banais que nos tornam repletos de júbilo pois se conectam a nossas necessidades primordiais. Ao contrário do prazer postiço de se acumular dinheiro ou adquirir o modelo mais sofisticado de carro e celular.

Para proporcionar tais bens materiais, nossa civilização explora (no sentido mais vil da palavra) as dádivas que a Natureza nos oferece gratuitamente, tornando-as mercadorias, expostas em gôndolas de supermercados e vitrines de shoppings. Para tanto, extrai até o limite o planeta a ponto de torná-lo inabitável. Espécies foram dizimadas, florestas e rios arrasados, o meio natural totalmente desfigurado. Esse modelo autofágico parece estar nos levando a um destino trágico em que a vida humana está se tornando inviável.

Não havendo mais o que e de onde tirar nesse planeta, o homem ‘civilizado’ sai como gafanhoto em busca de outros lugares no universo que possam ser rapinados para que expanda para outros mundos sua sanha insana de apropriação e destruição. A espoliada e esgotada Terra cada vez tem menos a oferecer.

O homem dito civilizado que presunçosamente se julga tão sábio, esnoba as culturas primitivas que aceitam humildemente como uma bênção o que a Natureza lhes deu. Julga-se superior aos animais ditos “irracionais” que vivem harmonicamente com o meio natural sem nada exigir. E para provar sua supremacia impõe com violência suas crenças e submete os “mais fracos” a seus valores.

Já não seria hora de repensar nosso modelo predatório de civilização baseado no TER ao invés do SER? E questionar se “progresso” é de fato mais importante do que “felicidade”?

O bilionário programa espacial é apenas um corolário desse modo insensato de agir.

 

 

 

sábado, 24 de abril de 2021

O CAPITÃO E O CLIMA

 

“Senhoras e senhores”.

“Nosso governo vem assumir perante a comunidade internacional o compromisso de colaborar para que as mudanças climáticas provocadas pelo vírus comunista chinês não impactem o lado Ocidental do planeta.”

“Assim, prontificamo-nos a zerar as emissões de carbono até o ano 2150 e não medir esforços para que a temperatura média da Terra cresça menos de 10oC até o fim do século, a fim de não colocar em risco a fauna de caninos, suínos, bovinos e outras espécies ameaçadas pela ação dos sem-terra, das ONG´s e dos grupos indígenas.”

“O controle da produção dos combustíveis fósseis terá como meta neutralizar os parâmetros de monóxido de carbono. Para tanto, incentivaremos o assentamento de reservas biológicas em interação com a cosmovisão das comunidades tradicionais em seu habitat. Será estabelecido o macrozoneamento ecossistêmico das populações caiçaras, quilombolas e yanomanis, um tombamento que preserve o patrimônio imaterial dos manguezais do semiárido e a realocação dos animais silvestres nas chapadas e nas bacias de sedimentação.”

“Vamos ampliar a rede de drenagem e a cobertura vegetal das caatingas pantaneiras, fomentando intra-setorialmente a distopia sustentável, a memória cultural coletiva e o surgimento de granjas, chácaras e sítios arqueológicos em regiões de vulnerabilidade biológica com altos padrões de balneabilidade transversa. É preciso notar que a implantação de unidades de conservação antrópica ameaça as populações zoomórficas heterogêneas como as tartarugas em desova, as aves migratórias, o mico leão dourado de savanas polares, o acasalamento das baleias autóctones e os pingüins mediterrâneos de zonas subtropicais mistas.”

“Não podemos deixar de ressaltar nossa matriz energética limpa de fontes renováveis através do controle gastroenterológico dos gases de efeito estufa que ocasionam buracos na camada de ozônio e derretimento das calotas polares através dos efeitos homeostáticos sinérgicos do CFC, do CO2 e da ECO-92 que alteram o microclima dos ecossistemas ecológicos e interferem no ph natural dos ciclos hidrológicos, hídricos e hidrostáticos com restrição de uso da hidroginástica a jusante das áreas degradadas.”

“São conhecidos os efeitos termodinâmicos entrópicos do manejo sustentável da decantação do mercúrio nos lençóis freáticos, dos metais pesados, dos hidrocarbonetos e das dioxinas nos aquíferos, do metano e do césio 137 em áreas vulcânicas em decomposição. A ação mitigadora dessas forças deletérias a nível trófico estratificado impede a cobertura vegetal psicocinética da flora intestinal e a fotossíntese dos agrotóxicos transgênicos e previne a biodiversidade, a desertificação e a dessalinização do solo em territórios com prevalência de práticas ancestrais de monocultura familiar, metas aliás traçadas pelo Protocolo de Kyoto e pelo Clube de Roma que priorizam minimizar a emissão de raios ultravioletas em zonas ribeirinhas frágeis com predominância de matas ciliares.”

“Precisamos também monitorar a multiplicação espasmódica dos biomas, das biotas, da biomassa, da biosfera, dos biótipos e do biotônico fontoura biodegradável em áreas de mananciais, unidades de conservação, estações ecológicas e reservas extrativistas de modo a impedir que a poluição eletromagnética do plâncton gerada pela energia eólica em áreas de intensa erosão coloque em risco a vida marinha, aeronáutica e estratosférica.”

“Por outro lado, sabemos que a reciclagem dos resíduos sólidos dos materiais particulados tóxicos nos aterros sanitários é responsável pelo surgimento de microorganismos aeróbicos artrópodes em zonas urbanas, que suscita a compostagem progressiva de coliformes fetais propiciando conflitos intergeracionais em espaços assoreados de bacias hidrológicas produtoras de hidroxicloroquina.”

“Diante desse grave quadro, o governo formará uma equipe técnica gabaritada comandada pelo general Pazuello com assessoria do ex-ministro Ernesto Araújo que se incumbirá de colocar em prática as ações necessárias. Ricardo Salles terá status de super-ministro acumulando as pastas do Meio Ambiente e do Agronegócio, com as funções de apreciar as multas, fiscalizar o corte de madeiras, incentivar a expansão das pastagens, transferir os índios para conjuntos habitacionais com TV a cabo e ar condicionado e assegurar a passagem da boiada, em parceria com madeireiros, grileiros, garimpeiros e boiadeiros.”

“Vamos prestigiar a fiscalização do IBAMA e melhorar suas condições financeiras. O orçamento do órgão que atualmente é zero será triplicado no ano que vem.”

“A execução do programa deverá ser exigida do próximo presidente e as medidas deverão ser implementadas durante o seu mandato.”

“Todo esse sacrifício do Brasil em prol do meio ambiente deverá ser recompensado financeiramente. Pleiteamos que as nações desenvolvidas participem com o aporte imediato de 1 trilhão de dólares, para que possamos instrumentalizar a execução do plano.”

“Obrigado.”

 

 

terça-feira, 20 de abril de 2021

CUIDADO, DOTÔ!

 

“É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar” (Geraldo Vandré)


Seu dotô, me desculpe invadir assim seu sossego. Não se avexe com meu aspecto franzino e meu jeito simplório, dotô. Não vou assaltar, nem pedir esmola, só levar uma prosinha. O assunto é breve mas muito sério.

Vejo pela sua roupa e sua aparência que o senhor foi abençoado pelo destino. As coisas com que o senhor gasta num mês eu não tenho condições de comprar em 10 anos ralando duro. Não duvido que sua grana foi ganha honestamente. Mesmo assim, desculpe falar, ela vem da exploração. Pois deveria por justiça estar nas mãos de um número bem maior de pessoas. Ao não fazer nada a respeito dessa má distribuição, o senhor é cúmplice de um crime.

Não alegue que não é culpa sua, dotô. Todos que vivem nesse país absurdamente desigual e lavam as mãos têm sim culpa no cartório. Mas nos mais ricos a culpa é muito maior. Não se trata de pedir um gesto de misericórdia em benefício dos menos afortunados. Os privilegiados que nem o senhor, dotô, têm OBRIGAÇÃO de fazer algo para mudar esse quadro de crueldade. Mas o que vejo é o oposto. Quanto mais abastado o sujeito se torna, mais pisa nos debaixo. Levar uma vida de ostentação e desperdício não é só uma atitude indecente. É um tapa na cara daqueles que suam para botar umas migalhas na mesa da família.

Não falo da esmola no farol, da gorjeta pro entregador de pizza ou dos trocados para a instituição de caridade. Isso só serve para aplacar a dor na consciência mas não bota a mão na ferida das injustiças.

Na boa, dotô: tem gente que ganha muito mais do que seria razoável pra um país miserável como o nosso. É grana demais! Não são só os donos de negócios, não. São aqueles engravatados, bacanas que tiveram uma educação de elite e conseguiram empregos que pagam bem. Também entram nesse saco políticos, juízes e esse punhado de gente que trabalha para o governo ganhando salários escorchantes mais auxílio-isso, auxílio-aquilo. Não aceitam abrir mão de um bocadinho de suas mordomias, mesmo sabendo que essa pequena fração daria para melhorar a vida de muitas famílias. É cada um por si e o resto que se lasque.

O cara suga todo o sumo que consegue do país que lhe deu condições de prosperar mas não dá uma gotinha em troca. E ainda se recusa a enxergar a escandalosa realidade em volta.  Vive com sua prole em segurança numa ilha da fantasia, um condomínio de luxo protegido por cerca eletrificada, separado por grossos muros do inferno do país real, sem lei, sem emprego, onde as pessoas amedrontadas caminham por vielas imundas e mal iluminadas, sujeitas à ação da bandidagem.

O senhor vai dizer que o cara trampou pesado pra chegar lá, não roubou e por isso merece o status que tem. Roubou sim! Pode não ter sacado o revólver. Seu crime pode não estar escrito nos códigos dos bambambans. Mas todo cara que goza uma vida de nababo e não mexe uma palha para minorar o sofrimento dos coitados, é um ladrão sacana. Não adianta se esconder por trás da carapuça de ‘homem de bem’.

E ainda por cima elege os governantes safados que prometem manter tudo como está. Os que podem melhorar as condições, são tachados de ‘comunistas’. Não somos comunistas, dotô. Só queremos que todos tenham um mínimo para que possam levar comida à mesa e deem educação pros guris. O que o senhor chama de comunismo, eu chamo de dignidade.

Eu não entendo de política, esquerda, direita... Só sei que direita a coisa não tá. E se tiver um Deus lá em cima ele vai estar de acordo comigo. Um Deus justo não vai querer que nenhum filho seu venha ao mundo em situação de desespero.

Não aceito esse papo que todos têm as mesmas oportunidades e que quem tem talento, sobe na vida. Mentira! Concordo que tem uns poucos pés rapados que se deram bem e mudaram de lado. Tipo Neymar e outros jogadores, artistas populares, ganhadores de mega-sena, pastores pilantras, traficantes, golpistas. Gente que faturou uma grana preta em pouco tempo e agora se acham. Esses são os piores, não têm um pingo de solidariedade com os brothers. Promovem festanças de luxo, exibem carrões e roupas de grife e sentem orgulho em espezinhar os desvalidos que já foram um dia.

Mas os que conseguiram quebrar a barreira e subir na vida, seja por que método for, são exceção. Um em um milhão. Já os que nasceram em berço de ouro, vão para as melhores escolas, com boas condições de vida e têm muito maior chance de se dar bem sem precisar contar com a sorte.

Que porcaria de país estamos construindo em que meia dúzia vive em padrão gringo, enquanto os ferrados rastejam catando lixo? Tá tudo errado, dotô.

Mas nada se faz impunemente. A paciência está se esgotando. Vejo os sinais. Escuto um burburinho crescente de gente reclamando nas periferias. Artistas sensíveis retratam esse inconformismo. Líderes da comunidade passam por cima dos políticos demagogos encorajando o povão a exigir seus direitos e começam a ser ouvidos. Nas escolas, professores esclarecidos ajudam a formar uma geração que entende que as coisas não precisam ser assim.

 Até quando, dotô, vocês acham que poderão impor essa exploração a uma imensa massa excluída, até aqui amansada pelos pastores charlatães, pelas mentiras da internet e pela repressão policial?

Quem avisa, amigo é. Fique ligado, dotô, que o bicho vai pegar. A brutalidade dos brucutus e dos milicianos que humilham os mais pobres está próxima ao limite e a reação vai vir na mesma proporção.  Não se engane com essa aparente tranquilidade, dotô. Pode ser a calmaria que precede o tsunami. Essa lenda de que o brasileiro é conformado, tudo aceita, está mudando. O ódio nas redes sociais é incorporado pelo pacato cidadão e vai detonar no colo dos canalhas que o disseminam. É a lei do retorno.  Essa situação insustentável de injustiça está tornando esse país um barril de pólvora, prestes a explodir. E aqueles que não quiseram ontem dar os anéis, talvez tenham amanhã que entregar os dedos.

Por isso, tome muito cuidado, dotô. A conta virá e não será barata.

Recomendações à patroa.

 


quarta-feira, 14 de abril de 2021

IMAGINE

(“Imagine there’s no countries” - John Lennon)

Nossa visão de mundo é a de uma colcha de retalhos. Tendo como referência o Atlas Geográfico, foi-nos ensinado na escola que cada pedacinho colorido é um país diferente. São os governos dessas nações que estabelecem as regras que o habitante do território a elas pertencente, é obrigado a cumprir. 

Mas não foi sempre assim. Pelo que me lembro das aulas de História, o ‘Estado-Nação’ surgiu após a Idade Média.  Deixo a incumbência de explicar suas origens aos historiadores de plantão. Sou um mero cronista inconformado com a situação.

Para dizer a verdade, não tenho nenhuma simpatia por essa concepção. Ao contrário do senso comum, não me entusiasmo em celebrar ideais como ‘patriotismo’ e ‘nacionalismo’. Tampouco me ufano em glorificar os símbolos pátrios. Acho que essas manifestações arcaicas só se prestam a separar as pessoas umas das outras. No máximo, torço pela seleção brasileira na Copa. Mas, passado o evento, volto a me considerar, acima de tudo, um cidadão da aldeia global chamada Terra. Esse formoso planeta azul que, a despeito das agressões praticadas pelos humanos, segue cumprindo diligentemente sua jornada no espaço sideral e cuja beleza inspirou Caetano a criar-lhe versos como “por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria”.

Sentimentos de enaltecer a pátria só se prestam a estimular valores nocivos como competição, hegemonia e exclusão que levam a guerras e fazem os governos gastar bilhões na aquisição de armamentos bélicos de extermínio, sugando verbas que poderiam ser utilizadas em saúde, educação e para tornar as pessoas mais felizes. Desviando recursos da vida para a morte. Considero muito mais nobres valores como cooperação, solidariedade e humanidade.

Não entendo por que um ‘compatriota’ parido no território situado entre o Oiapoque e o Chuí deva ser considerado mais meu irmão do que um aborígene australiano do outro lado dos mares. São ambos indivíduos pertencentes à mesma espécie, diferenciados apenas pelas peculiaridades que fazem da raça humana esse rico painel de diversidade, onde criaturas semelhantes permitem-se ser tão maravilhosamente diferentes. Amo a todos igualmente, com suas abençoadas dessemelhanças. Afinal, somos filhos do mesmo Deus que, ao nos dar a bênção da vida, não estava preocupado em checar nosso pedigree.

Vou além. Acho que mesmo outras categorias de vida, animais, plantas e até formas inanimadas como pedras, montanhas, nuvens e rios devem ser objetos de devoção e reverência pois fazem parte da nossa vida na Terra, o astro mãe que generosamente nos acolheu, sem que a ninguém tivesse sido solicitado  passaporte.

A natureza não impôs segregação às pessoas. Foram os humanos que a si próprios criaram barreiras, demarcando territórios. Essa apartação foi reforçada pela necessidade dos homens de se agruparem em bandos que rivalizam entre si: tribos, gangues, torcidas organizadas, religiões, partidos políticos, nações.

Parece-me um salto ético que os povos subordinem-se à mesma administração “planetária” em que todos sejam tratados em condições igualitárias. A miséria que impera na África com massacres, surgimento de novos vírus e crescimento populacional exacerbado, acabará mais dia menos dia voltando seus efeitos maléficos para todo o planeta. Afinal, queiramos ou não, somos todos passageiros dessa mesma nave e temos obrigação de preservá-la.

Um mundo sem fronteiras, onde os interesses gerais se sobreponham aos nacionais não vai surgir nessa década nem na próxima. Há muitos obstáculos para viabilizar essa utopia. Mas como disse John Lennon (“you may say I’m a dreamer, but I’m not the only one, I hope someday you’ll join us”), se juntarmos os sonhos e lutarmos por eles, quem sabe nossos netos possam viver num planeta onde a fraternidade universal esteja acima do orgulho nacional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

ALL ABOUT B

 

No momento em que quase todos os hospitais do país estão abarrotados, sem leitos disponíveis e pacientes morrem em filas de atendimento à espera de uma vaga na UTI, nosso presidente vem à TV concitar todos a saírem às ruas de volta às atividades.

É surreal que o homem que administra a nação, ciente da situação de colapso nos centros de saúde, peça a seus governados que saiam de casa e se exponham a contrair um vírus letal, sabendo que caso adoeçam não poderão contar com amparo médico.

Devido a isso, muitos desistiram de entender os atos de Bolsonaro e passaram a discutir sua sanidade mental. Estaria o Brasil sendo governado por um demente? Ou ‘apenas’ um homem extremamente cruel e insensível?

Mais importante do que entender o governo Bolsonaro, é preciso conhecer o homem Bolsonaro. Afinal quem é Bolsonaro? Ou o QUÊ é Bolsonaro? Vamos a ele nos referir como B. É de fato B um ser humano?

A pandemia serviu para trazer à luz, o caráter desse indivíduo. As posições de B frente à pandemia são conhecidas: é negacionista, contra a ciência, desdenha o uso de máscaras e só parou de criticar a vacina quando percebeu que isso estava desgastando sua popularidade.

B também é contra o distanciamento social. Repete insistentemente que as pessoas devem retornar ao emprego, que o trabalhador está padecendo por não poder sair de casa. Mas nem mesmo seu apoiador mais incondicional acredita que B esteja sinceramente preocupado com o humilde trabalhador brasileiro. Sabemos que B não tem empatia com pobres. A política econômica da administração B é claramente voltada para os empresários e o mercado. Parece óbvio que a preocupação de B não é com os dramas do homem simples do povo e sim com o impacto que sua ausência ao trabalho vai ocasionar para a economia e, por conseguinte, para o sucesso de seu governo. Perder a vida é um detalhe sem importância ante a imperiosa necessidade de fazer a economia crescer.

Pode-se objetar que a formação militar de B faça-o encarar as perdas humanas como baixas numa guerra. As centenas de milhares de mortos são o preço a pagar. Mesmo aqui, B desonra a classe pois o militar digno, ao contrário de B, nunca menospreza a vida do soldado sob seu comando.

Basta ver a reação de B face à escalada macabra da doença. Quando o Brasil passou a ser o segundo do mundo em número diário de óbitos, B foi passear de jet ski. Quando o número total de mortos chegou a 200 mil, foi assistir a um treino do Flamengo. A verdade é que B está pouco se lixando para a tragédia sem precedentes e para a desgraça sanitária que se abateu sobre o país. O assunto parece não lhe dizer respeito.

Alguém já viu B visitar algum hospital para dar força moral aos médicos e animar os pacientes? B alguma vez ofereceu conforto aos familiares das vítimas? B preocupou-se em envidar esforços para socorrer municípios em situação de calamidade?

Em discursos recentes, possivelmente aconselhado por algum assessor, B aceitou incluir meia dúzia de palavras manifestando (sem transparecer sinceridade) apoio às famílias.

Nem mesmo personalidades importantes do Brasil abatidas pela COVID, como seu ex-aliado senador Major Olímpio, mereceram de B uma nota de pesar pela dor da família.

A impressão que fica é que B odeia quem morre. Cada pessoa que perde a vida, na conta de B, engrossa a estatística que corrói sua popularidade. B chegou a chamar o sofrimento das famílias enlutadas de ‘mimimi’. Que indivíduo faz uma declaração repulsiva como essa?

Não é preciso grandes análises psicológicas para inferir que B não tem sentimentos. Basta observar sua expressão impassível. B exibe um semblante duro, gélido. Tem um olhar sem vida como o de um zumbi. Não demonstra amor e compaixão pelo próximo.

B não chora. Minto. Vi uma vez os olhos frios de B marejaram quando ele foi ovacionado por apoiadores (obviamente, sem máscara). A única coisa capaz de emocionar B é quando o orgulho por ser venerado aflora. Quando é chamado de Mito.

B se diz religioso, é filmado rezando e sendo abençoado por pastores. Mas que religiosidade pode haver num indivíduo que não tem solidariedade, ignora o sofrimento alheio, inclusive daqueles que, confiando em seu propósito de zelar por suas vidas, o elegeram? B imagina que foi escolhido não para governar uma nação formada por gente de carne e osso, mas para exibir índices econômicos favoráveis.

B quer passar a imagem de ser um homem de família, divulga fotos em cenas domésticas ao lado dos filhos. Sim, B tem apreço por seus filhos. Mais que isso, tem obsessão por eles. B preocupa-se tanto com seus filhos que nunca ousa confrontá-los. Jamais os critica e raras vezes os contraria. É capaz de demitir ministros da Justiça e chefes de polícia que os investigam. Não vacila em trocar médicos gabaritados, presidentes de bancos e comandantes militares de alta patente. Mas jamais repreende um filho. B pode ser um psicopata genocida, nunca um pai descuidado.

Aliás, os filhos de B parecem ter herdado os atributos paternos. O filho 03 regozijou-se nas redes sociais quando Lula perdeu seu neto. Que espécie de gente comemora a morte de uma criança e tripudia sobre a dor indescritível de um avô que perdeu o neto, ainda que seja seu adversário político? Portador do mesmo gene do pai, sem dúvida. 

B de fato não é humano. Pensando melhor... talvez seja. Ao vermos as barbaridades executadas por seres humanos contra seus semelhantes, promovendo guerras, massacres, crimes hediondos, destruindo florestas, poluindo rios, emporcalhando oceanos e aniquilando todas as demais formas de vida, vemos que a raça humana degenerou-se. Não deu certo. Tornou-se podre, um câncer que ameaça o planeta.

Reformulando nossa resposta: sim, B é humano. É um legítimo exemplar da raça humana.