“É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”
(Geraldo Vandré)
Seu dotô, me desculpe invadir assim seu sossego. Não se avexe com meu aspecto franzino e meu jeito simplório, dotô. Não vou assaltar, nem pedir esmola, só levar uma prosinha. O assunto é breve mas muito sério.
Vejo pela sua roupa e sua aparência que o senhor foi abençoado pelo
destino. As coisas com que o senhor gasta num mês eu não tenho condições de
comprar em 10 anos ralando duro. Não duvido que sua grana foi ganha honestamente.
Mesmo assim, desculpe falar, ela vem da exploração. Pois deveria por justiça estar
nas mãos de um número bem maior de pessoas. Ao não fazer nada a respeito dessa má
distribuição, o senhor é cúmplice de um crime.
Não alegue que não é culpa sua, dotô. Todos que vivem nesse país absurdamente
desigual e lavam as mãos têm sim culpa no cartório. Mas nos mais ricos a culpa
é muito maior. Não se trata de pedir um gesto de misericórdia em benefício dos
menos afortunados. Os privilegiados que nem o senhor, dotô, têm OBRIGAÇÃO de fazer
algo para mudar esse quadro de crueldade. Mas o que vejo é o oposto. Quanto
mais abastado o sujeito se torna, mais pisa nos debaixo. Levar uma vida de
ostentação e desperdício não é só uma atitude indecente. É um tapa na cara
daqueles que suam para botar umas migalhas na mesa da família.
Não falo da esmola no farol, da gorjeta pro entregador de pizza ou dos
trocados para a instituição de caridade. Isso só serve para aplacar a dor na
consciência mas não bota a mão na ferida das injustiças.
Na boa, dotô: tem gente que ganha muito mais do que seria razoável pra um
país miserável como o nosso. É grana demais! Não são só os donos de negócios, não.
São aqueles engravatados, bacanas que tiveram uma educação de elite e conseguiram
empregos que pagam bem. Também entram nesse saco políticos, juízes e esse
punhado de gente que trabalha para o governo ganhando salários escorchantes mais
auxílio-isso, auxílio-aquilo. Não aceitam abrir mão de um bocadinho de suas
mordomias, mesmo sabendo que essa pequena fração daria para melhorar a vida de muitas
famílias. É cada um por si e o resto que se lasque.
O cara suga todo o sumo que consegue do país que lhe deu condições de
prosperar mas não dá uma gotinha em troca. E ainda se recusa a enxergar a escandalosa
realidade em volta. Vive com sua prole
em segurança numa ilha da fantasia, um condomínio de luxo protegido por cerca
eletrificada, separado por grossos muros do inferno do país real, sem lei, sem
emprego, onde as pessoas amedrontadas caminham por vielas imundas e mal
iluminadas, sujeitas à ação da bandidagem.
O senhor vai dizer que o cara trampou pesado pra chegar lá,
não roubou e por isso merece o status que tem. Roubou sim! Pode não ter sacado
o revólver. Seu crime pode não estar escrito nos códigos dos bambambans. Mas
todo cara que goza uma vida de nababo e não mexe uma palha para minorar o
sofrimento dos coitados, é um ladrão sacana. Não adianta se esconder por trás
da carapuça de ‘homem de bem’.
E ainda por cima elege os governantes safados que prometem manter tudo
como está. Os que podem melhorar as condições, são tachados de ‘comunistas’.
Não somos comunistas, dotô. Só queremos que todos tenham um mínimo para que possam
levar comida à mesa e deem educação pros guris. O que o senhor chama de
comunismo, eu chamo de dignidade.
Eu não entendo de política, esquerda, direita... Só sei que direita a
coisa não tá. E se tiver um Deus lá em cima ele vai estar de acordo comigo. Um
Deus justo não vai querer que nenhum filho seu venha ao mundo em situação de desespero.
Não aceito esse papo que todos têm as mesmas oportunidades e que quem tem
talento, sobe na vida. Mentira! Concordo que tem uns poucos pés rapados que se
deram bem e mudaram de lado. Tipo Neymar e outros jogadores, artistas
populares, ganhadores de mega-sena, pastores pilantras, traficantes, golpistas.
Gente que faturou uma grana preta em pouco tempo e agora se acham. Esses são os
piores, não têm um pingo de solidariedade com os brothers. Promovem festanças
de luxo, exibem carrões e roupas de grife e sentem orgulho em espezinhar os desvalidos
que já foram um dia.
Mas os que conseguiram quebrar a barreira e subir na vida, seja por que
método for, são exceção. Um em um milhão. Já os que nasceram em berço de ouro, vão
para as melhores escolas, com boas condições de vida e têm muito maior chance
de se dar bem sem precisar contar com a sorte.
Que porcaria de país estamos construindo em que meia dúzia vive em padrão
gringo, enquanto os ferrados rastejam catando lixo? Tá tudo errado, dotô.
Mas nada se faz impunemente. A paciência está se esgotando. Vejo os sinais.
Escuto um burburinho crescente de gente reclamando nas periferias. Artistas
sensíveis retratam esse inconformismo. Líderes da comunidade passam por cima
dos políticos demagogos encorajando o povão a exigir seus direitos e começam a
ser ouvidos. Nas escolas, professores esclarecidos ajudam a formar uma geração
que entende que as coisas não precisam ser assim.
Até quando, dotô, vocês acham que
poderão impor essa exploração a uma imensa massa excluída, até aqui amansada
pelos pastores charlatães, pelas mentiras da internet e pela repressão
policial?
Quem avisa, amigo é. Fique ligado, dotô, que o bicho vai pegar. A
brutalidade dos brucutus e dos milicianos que humilham os mais pobres está
próxima ao limite e a reação vai vir na mesma proporção. Não se engane com essa aparente tranquilidade,
dotô. Pode ser a calmaria que precede o tsunami. Essa lenda de que o brasileiro
é conformado, tudo aceita, está mudando. O ódio nas redes sociais é incorporado
pelo pacato cidadão e vai detonar no colo dos canalhas que o disseminam. É a
lei do retorno. Essa situação
insustentável de injustiça está tornando esse país um barril de pólvora, prestes
a explodir. E aqueles que não quiseram ontem dar os anéis, talvez tenham amanhã
que entregar os dedos.
Por isso, tome muito cuidado, dotô. A conta virá e não será barata.
Recomendações à patroa.
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