“Mas o que mais me dói, você escolheu errado seu super-herói” (As
Frenéticas / Aguilar)
MITO (do grego ‘Mythos’) é uma fantasia presente no imaginário coletivo, concebida por um grupo para servir de suporte a seus anseios. Um dos maiores mitos de nossa era é o do ‘SALVADOR DA PÁTRIA’. Renato Janine, professor da FFLCH da USP, explica que essa categoria de mito foi a nós legada nos tempos da colonização através do ‘sebastianismo’, crença surgida com a figura de Dom Sebastião, rei de Portugal. Após a morte deste monarca na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, reza a lenda, ele retornaria dos céus para redimir o povo lusitano de seus infortúnios.
Baseado em tais raízes
históricas, o povo brasileiro tornou-se pródigo em produzir salvadores da
pátria como o ‘varre vassourinha’ (Jânio) ou o
‘caçador de marajás’ (Collor), cada vez que o acúmulo de pepinos enseja a vinda
de um paizão autoritário para ‘colocar ordem na casa’. Evoca então essa criatura
mitológica acreditando que ela possa sozinha dar um jeito na encrenca. Aliás,
essa é uma característica do mito: ele dispensa da colaboração de outros, já
que, tal como um super-homem, é dotado de poderes extraordinários presumidos pelas
massas que nele confiam cegamente.
O advento desses
semideuses não combina com a democracia, um regime cujo funcionamento depende da
atuação harmônica de diversos atores em prol do bem comum. Nessa modalidade de
governo, ninguém se sobrepõe aos demais e todos se submetem ao ‘império da lei’.
Em nações desenvolvidas da Europa que possuem regimes estáveis e maduros e
desfrutam de elevado padrão de vida e educação de qualidade, não há espaço para
a ascensão desses justiceiros supremos. Os governantes são tratados como servidores
públicos, meros executores de ações definidas pela sociedade organizada. Se
saem da linha, são sumariamente escanteados pelos mecanismos do próprio sistema
e, dependendo do deslize, terão de se haver com a justiça.
Infelizmente, o Brasil
está a anos-luz desse estágio civilizatório. Nossa democracia é manca, os
políticos são medíocres, sem espírito público e não contam com credibilidade da
população. Esta por sua vez não está nem aí com os desmandos dos eleitos nem deles
cobra idoneidade. Essa índole do brasileiro explica a necessidade de ‘salvadores
da pátria’ que resolvam pra ele essas pendengas. Um chefão mão de ferro que vai
dar um jeito em tudo e ‘botar a bandidagem pra correr’.
Não foi por acaso que, após um período turbulento com crescimento nulo, desemprego nas nuvens, criminalidade em alta e corrupção correndo solta, surgisse um novo ‘salvador da pátria’. Com políticos pilantras e um judiciário que não funciona, ambos cuidando mais de suas mordomias e de seus interesses corporativos do que das agruras do povão, o eleitor desiludido anteviu na figura redentora de um capitão ‘linha dura’, o personagem ideal para 'colocar as coisas nos eixos'. Bolsonaro soube assumir com competência uma imagem antissistema, contra ‘tudo que está aí’, e emplacou como ‘mito’ da hora.
Por isso, não adianta
tentar desconstruí-lo com menções a riscos à democracia e ameaças autoritárias,
uma vez que seus apoiadores são imunes a tais insultos. O sujeito não foi
colocado ali por seus predicados pessoais ou suas virtudes como estadista, mas para acabar
com a ‘bagunça’ que pretensamente tomava conta do país. Está simplesmente desempenhando
o papel de mito. É ele o próprio “MITO”, como é chamado, o Messias (que está
até em seu nome). Pode fazer e desfazer a seu bel prazer e será sempre idolatrado
por um séquito de veneradores fanáticos como ente divino, acima do bem e do mal. Tudo o que
realizar tornar-se-á ungido pela mão de Deus e o que rejeitar cairá em maldição
eterna.
A cloroquina por ele enaltecida
foi acolhida como elixir dos deuses e as hordas acorreram em defendê-la perante
os ímpios esquerdistas, partidários de vacinas. Já as urnas eletrônicas, obras
do demônio, foram em uníssono desqualificadas nas redes sociais. Obviamente, os
seguidores de Bolsonaro não têm a menor ideia do que estão defendendo ou criticando. Apenas replicam os ideais de seu ídolo celestial. Afrontam os ministros do STF que até ontem sequer imaginavam que apito tocavam.
Desmentem cientistas e infectologistas renomados com base no WhatsApp repassado
por ordem do pastor. Desconfiam da imprensa e da palavra de especialistas, achando
que tudo não passa de um complô comunista para derrubar o MITO. Para derrotá-lo,
não há como lhe contrapor ideias ou argumentos. Só mesmo confrontando-o com
outro Mito. Aí entra o Lula que, acima de ideais socialistas, encarna a figura
mítica de ‘pai dos pobres’.
Até quando, para resolver nossos problemas, precisaremos de mitos? Como figura fantasiosa,
nos levará à frustração, ao cairmos na real. Impede que a sociedade desenvolva
mecanismos impessoais e duradouros para superar suas mazelas. As pessoas que necessitam
de mitos são, de certa forma, infantilizadas, não assumiram a responsabilidade
de tomar o destino em suas mãos e precisam delegar essa função a um ‘todo-poderoso’.
Situações assim produziram Hitler, Stálin, Trump, Putin e outros mitos nefastos
com legiões de adoradores. Espero que, de tanto dar cabeçadas, os homens aprendam a se apropriar do poder de aperfeiçoar o mundo sem precisar de figuras messiânicas
que lhes mostrem o caminho.