“Hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude,
tá em casa guardado por Deus, contando o vil metal” (Belchior)
Esse texto trata das
peculiaridades de uma figura de presença marcante na cena contemporânea a que designarei
‘sr. X’. Por extensão, inclui também seu equivalente feminino, a ‘sra. X’, à
qual pedimos escusas por não nos referirmos a ela explicitamente.
O sr. X pertence a uma
geração a que se convencionou chamar de ‘baby boomer’. Nascido não muito após o
fim da Grande Guerra, incorporou a mudança radical de costumes ocorrida nos
anos 60, com o afloramento do movimento hippie, do rock, da cultura libertária
e contestatória. Clamava por justiça e cultivava paz e amor. O sr. X, à época apenas
o ‘bicho grilo’ X, prometia abalar os alicerces de uma sociedade corrompida e
enterrar a hipocrisia de uma geração que promoveu guerras e holocausto nuclear,
e um modo de vida consumista e racista que explorava os povos originários e depredava
a natureza.
Inspirada no modelo americano
e europeu, a versão tupiniquim do sr. X ficou circunscrita às classes média e
alta, cursava boas escolas e impregnou-se das mudanças revolucionárias no campo
das artes e do conhecimento. Consciente e inovador, o sr. X foi um indivíduo
privilegiado num país onde as grandes massas viviam em condições sub-humanas, cujas
necessidades urgentes tornavam-nas alheias a tais pautas. Reunia o sr. X condições
para, com base nos nobres ideais que trazia consigo, liderar um projeto
reformista para levar o Brasil a cumprir seu desígnio de país do futuro, próspero
e menos desigual.
Tendo frequentado os
mesmos ambientes e sujeitando-me às mesmas influências, imaginei conhecer bem o
sr. X. Assistindo a figura burlesca que se tornou, vejo que me enganei. Não
reconheço na postura por ele hoje assumida aquele protagonista cheio de vigor e
anseios que, há poucas décadas, queria transformar o mundo. Causa-me perplexidade,
em especial, o apagão cultural de que o sr. X foi vítima ao chegar à “melhor
idade”.
Constato que o tempo
fez mal ao sr. X, cujo prazo de validade revelou-se não passar dos 50 anos. Tornou-se
ele um ferrenho conservador (algo compreensível para alguém de valores estabelecidos
que resiste a assimilar o novo). Mas foi além: renunciou aos valiosos princípios
que, com orgulho, outrora defendia.
Ficou restrito a seu limitado
mundinho burguês, empachado de bens supérfluos a que as legiões de miseráveis que
padecem sem emprego nem perspectivas jamais terão acesso. Esgotou e deteriorou
sem responsabilidade os recursos naturais que agora faltam aos sobreviventes da
calamidade ambiental.
Hoje, vejo com tristeza
muitos respeitáveis srs. X repetindo gaiatices como ‘Deus, Pátria e Família
Acima de Tudo’ e outros bordões fascistas que combatia quando era um rebelde
idealista. O sr. X esqueceu-se de tudo o que lhe foi ensinado nos livros que
deveria ter lido, nos filmes que deixou de assistir, nos museus que jamais
frequentou, no teatro no qual nunca pisou, até cair na esparrela da ‘cloroquina’.
Abriu mão do pacifismo para encampar a campanha
miliciana em prol de armas.
Parece que o sr. X
desconectou-se das legítimas demandas juvenis. E não falo de temas polêmicos
como drogas, identitarismo ou aborto. Mas de educação, cultura e meio-ambiente cuja
defesa seu reacionarismo fez com que abrisse mão. Faz jus à alcunha pejorativa de ‘coroa’ e ‘careta’
que as novas gerações lhe impingem.
Parte dos srs. X não
está mais entre nós. Hoje, os remanescentes, que vêm driblando a morte e a senilidade,
encontram-se aposentados e passam seus dias praguejando contra os novos tempos sem,
porém, abrir mão do que as novas tecnologias têm de pior: fake news e mensagem de
ódio contra tudo que ameace seu retrógrado conformismo, repassadas nos
patéticos grupos de WhatsApp compostos por outros ‘tiozões’.
O maravilhoso mundo que
o sr. X prometeu entregar a seus filhos e netos reverteu-se num planeta esfacelado
em que as nações se engalfinham por maior poder bélico, os magnatas acumulam fortunas
incalculáveis e bilhões de famintos perambulam como zumbis pelos continentes e
mares em busca de um lugar menos aflitivo em que possam sobreviver.
Tchau, sr. X, seu esfrangalhado
reino de mentiras e falsidades está chegando a um melancólico fim. E não
deixará saudades.
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